QUARTO DE DESPEJO
Diário de uma favelada
“QUARTO DE DESPEJO”,
volume 1 da coleção Contrastes e
Confrontos, foi composto e impresso em Agosto de 1960, nas Oficinas
Gráficas de Linográfica Editora Ltda., rua Almirante Barroso, 478, – para a “LIVRARIA
FRANCISCO ALVES” (Editora PAULO DE
AZEVEDO LTDA.) em São Paulo.
* * *
15 de julho de 1955
Aniversario de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de
sapatos para ela. Mas o custo dos generos alimenticios nos impede a realização
dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par
de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.
Eu não tinha um tostão para
comprar pão. Então eu lavei 3 litros e troquei com o Arnaldo. Ele ficou com os
litros e deu-me pão. Fui receber o dinheiro do papel. Recebi 65 cruzeiros.
Comprei 20 de carne. 1 quilo de toucinho e 1 quilo de açúcar e seis cruzeiros
de queijo. E o dinheiro acabou-se.
Passei o dia indisposta. Percebi
que estava resfriada. A noite o peito doia-me. Comecei tussir. Resolvi não sair
a noite para catar papel. Procurei meu filho João José. Ele estava na rua
Felisberto de Carvalho, perto do mercadinho. O onibus atirou um garoto na
calçada e a turba aflui-se. Ele estava no nucleo. Dei-lhe uns tapas e em cinco
minutos ele chegou em casa.
Ablui as crianças, aleitei-as e
ablui-me e aleitei-me. Esperei até as 11 horas, um certo alguém. Ele não veio.
Tomei um melhoral e deitei-me novamente. Quando despertei o astro rei deslisava
no espaço. A minha filha Vera Eunice dizia: – Vai buscar agua mamãe!
16 de junho Levantei-me.
Obedeci a Vera Eunice. Fui buscar agua.
Fiz o café. Avisei as crianças que não tinha pão. Que tomassem café simples e
comesse carne com farinha. Eu estava indisposta, resolvi benzer-me. Abri a boca
duas vezes, certifiquei-me que estava com mau olhado. A indisposição
desapareceu sai e fui ao seu Manoel levar umas latas para vender. Tudo quanto
eu encontro no lixo eu cato para vender. Deu 13 cruzeiros. Fiquei pensando que
precisava comprar pão, sabão e leite para a Vera Eunice. E os 13 cruzeiros não
dava cheguei em casa, aliás no meu barracão, nervosa e exausta. Pensei na vida
atribulada que eu levo. Cato papel, lavo roupa para dois jovens, permaneço na rua
o dia todo. E estou sempre em falta. A Vera não tem sapatos. E ela não gosta de
andar descalça. Faz uns dois anos, que eu pretendo comprar uma maquina de moer
carne. E uma maquina de costura.
Cheguei em casa, fiz o almoço
para os dois meninos. Arroz, feijão e carne. E vou sair para catar papel.
Deixei as crianças. Recomendei-lhes para brincar no quintal e não sair na rua,
porque os pessimos vizinhos que eu tenho não dão socego aos meus filhos. Saí
indisposta, com vontade de deitar. Mas, o pobre não repousa. Não tem o
previlegio de gosar descanço. Eu estava nervosa interiormente, ia maldizendo a
sorte (. . .) Catei dois sacos de papel. Depois retornei, catei uns ferros,
umas latas, e lenha. Vinha pensando. Quando eu chegar na favela vou encontrar
novidades. Talvez a D. Rosa ou a indolente Maria dos Anjos brigaram com meus
filhos. Encontrei a Vera Eunice dormindo e os meninos brincando na rua. Pensei:
são duas horas. Creio que vou passar o dia sem novidade! O João José veio
avisar-me que a perua que dava dinheiro estava chamando para dar mantimentos.
Peguei a sacola e fui. Era o dono do Centro Espirita da rua Vergueiro 103.
Ganhei dois quilos de arroz, idem de feijão e dois quilos de macarrão. Fiquei
contente. A perua foi-se embora. O nervoso interior que eu sentia ausentou-se.
Aproveitei a minha calma interior para eu ler. Peguei uma revista e sentei no
capim, recebendo os raios solar para aquecer-me. Li um conto. Quando iniciei
outro surgiu os filhos pedindo pão. Escrevi um bilhete e dei ao meu filho João
José para ir ao Arnaldo comprar um sabão, dois melhoraes e o resto pão. Puis
agua no fogão para fazer café. O João retornou-se. Disse que tinha perdido os
melhoraes. Voltei com ele para procurar. Não encontramos.
Quando eu vinha chegando no
portão encontrei uma multidão. Crianças e mulheres que vinha reclamar que o
José Carlos havia apedrejado as suas casa. Para eu repreende-lo.
17 de junho Domingo. Um dia
maravilhoso. O céu azul sem nuvens. O Sol está tepido. Deixei o leito as 6,30.
Fui buscar agua. Fiz café. Tenho só um pedaço de pão e 3 cruzeiros. Dei um
pedaço a cada um, puis feijão no fogo que ganhei ontem do Centro Espirita da
Rua Vergueiro 103. Fui lavar minhas roupas. Quando retornei do rio o feijão
estava cosido. Os filhos pediram pão. Dei os 3 cruzeiros ao João José para ir
comprar pão. Hoje é a Nair Mathias quem começou impricar com meus filhos. A
Silvia e o esposo já iniciaram o espetaculo ao ar livre. Ele está lhe
espancando. E eu estou revoltada com o que as crianças presenciam. Ouvem
palavras de baixo calão. Oh! se eu pudesse mudar daqui para um nucleo mais
decente.
Fui na D. Florela pedir um dente
de alho. E fui na dona Analia. E recebi o que esperava:
– Não tenho!
Fui torcer as minhas roupas. A D.
Aparecida perguntou-me:
– A senhora está gravida?
– Não senhora, respondi
gentilmente.
E lhe chinguei interiormente. Se
estou gravida não é de sua conta. Tenho pavor destas mulheres da caverna. Tudo
quer saber! A lingua delas é com os pés de galinha. Tudo espalha. Está
circulando rumor que eu estou gravida! E eu não sabia!
Saí a noite, e fui catar papel.
Quando eu passava perto do campo do São Paulo, varias pessoas saíam do campo.
Todos brancos, só um preto. E o preto começou insultar-me.
– Vai catar papel, minha tia?
Olha o buraco, minha tia.
Eu estava indisposta. Com vontade
de deitar. Mas prossegui. Encontrei varias pessoas amigas e parava para falar.
Quando eu subia a Avenida Tiradentes encontrei umas senhoras. Uma perguntou-me:
– Sarou as pernas?
Depois que operei fiquei boa,
graças a Deus. E até pude dançar no Carnaval, com minha fantasia de penas. Quem
operou-me foi o Dr. José Torres Netto. Bom médico. E falamos de políticas.
Quando uma senhora perguntou-me o que acho do Carlos Lacerda, respondi
concientemente:
– Muito inteligente mas não tem
iducação. É um político de cortiço. Que gosta de intriga. Um agitador.
Uma senhora disse que foi pena! A
bala que pegou o Mjor podia acertar no Carlos Lacerda.
– Mas seu dia... chegará –
comentou outra.
Varias pessoas afluíram-se. Eu
era o alvo das atenções. Fiquei apreensiva, porque eu estava catando papel,
andrajosa (. . .) Depois, não mais quis falar com ninguem, porque precisava
catar papel. Precisava de dinheiro. Eu não tinha dinheiro em casa para comprar
pão. Trabalhei até as 11,30. Quando cheguei em casa era 24 horas. Esquentei
comida, dei para a Vera Eunice, jantei e deitei-me. Quando despertei, os raios
solares penetrava pelas frestas do barracão.
18 de julho Levantei as 7
horas. Alegre e contente. Depois que veio os aborrecimentos. Fui no deposito
receber... 60 cruzeiros. Passei no Arnaldo. Comprei pão, leite, paguei o que
devia e reservei dinheiro para comprar Licôr de Cacau para Vera Eunice. Cheguei
no inferno. Abri a porta e pus os meninos para fora. A D. Rosa, assim que viu o
meu filho José Carlos começou impricar com êle. Não queria que o menino
passasse perto do barracão dela. Saiu com um pau para espancá-lo. Uma mulher de
48 anos brigar com criança! As vezes eu saio, ela vem até a minha janela e joga
o vaso de fezes nas crianças. Quando eu retorno encontro os travesseiros sujos
e as crianças fétidas. Ela odeia-me. Diz que sou preferida pelos homens bonitos
e distintos. E ganho mais dinheiro do que ela.
Surgio a D. Cecilia. Veio
repreender os meus filhos. Lhe joguei uma direta, ela retirou-se. Eu disse:
– Tem mulher que diz saber criar
os filhos, mas algumas tem filhos na cadeia classificado como mau elemento.
Ela retirou-se. Veio a indolente
Maria dos Anjos. Eu disse:
– Eu estava discutindo com a
nota, já começou chegar os trôcos. Os centavos. Eu não vou na porta de ninguem.
É vocês quem vem na minha porta aborrecer-me. Eu nunca chinguei filhos de
ninguem, nunca fui na porta de vocês reclamar contra seus filhos. Não pensa que
eles são santos. É que eu tolero crianças.
Veio a D. Silvia reclamar contra
os meus filhos. Que os meus filhos são mal iducados. Mas eu não encontro defeito nas crianças. Nem nos
meus nem nos dela. Sei que criança não nasce com senso. Quando falo com uma
criança lhe dirijo palavras agradaveis. O que aborrece-me é elas vir na minha
porta perturbar a minha escassa tranquilidade interior (. . .) Mesmo elas
aborrecendo-me, eu escrevo. Sei dominar meus impulsos. Tenho apenas dois anos
de grupo escolar, mas procurei formar o meu caráter. A única coisa que não
existe na favela é solidariedade.
Veio o peixeiro Senhor Antonio
Lira e deu-me uns peixes. Vou fazer o almoço. As mulheres saíram, deixou-me em
paz por hoje. Elas já deram o espetáculo. A minha porta atualmente é theatro.
Todas crianças jogam pedras, mas os meus filhos são os bodes expiatorios. Elas
alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas. Elas tem
marido. Mas, são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associações de
caridade.
Os meus filhos não são
sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer especie de trabalho para
mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite
enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas
vienenses. Enquanto os esposos quebra as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos
sossegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas
indianas.
Não casei e não estou
descontente. Os que preferiu me eram soezes e as condições que eles me impunham
eram horriveis.
Tem a Maria José, mais conhecida
por Zefa, que reside no barracão da Rua B numero 9. É uma alcoolatra. Quando
está gestante bebe demais. E as crianças nascem e morrem antes dos doze meses.
Ela odeia-me porque os meus filhos vingam e por eu ter radio. Um dia ela
pediu-me o radio emprestado. Disse-lhe que não podia emprestar. Que ela não
tinha filhos, podia trabalhar e comprar. Mas, é sabido que pessoas que são
dadas ao vicio da embriaguez não compram nada. Nem roupas. Os ebrios não
prosperam. Ela as vezes joga agua nos meus filhos. Ela alude que eu não expanco
os meus filhos. Não sou dada a violência. O José Carlos disse:
– Não fique triste mamãe! Nossa
Senhora Aparecida há de ter dó da senhora. Quando eu crescer eu compro uma casa
de tijolos para a senhora.
Fui catar papel e permaneci fora
de casa uma hora. Quando retornei vi várias pessoas as margens do rio. É que lá
estava um senhor inconciente pelo alcool e os homens indolentes da favela lhe
vasculhavam os bolsos. Roubaram o dinheiro e rasgaram os documentos (. . .) É 5
horas. Agora que o Senhor Heitor ligou a luz! E eu, vou lavar as crianças para
irem para o leito, porque eu preciso sair. Preciso dinheiro para pagar a luz.
Aqui é assim. A gente não gasta luz, mas precisa pagar. Saí e fui catar papel.
Andava depressa porque já era tarde. Encontrei uma senhora. Ia maldizendo sua
vida conjugal. Observei mas não disse nada. (. . .) Amarrei os sacos, puis as
latas que catei no outro saco e vim para casa. Quando cheguei liguei o radio
para saber as horas. Era 23,55. Esquentei comida, li, despi-me e depois deitei.
O sono surgio logo.
19 de julho Despertei as 7
horas com a conversa dos meus filhos. Deixei o leito, fui buscar agua. As
mulheres já estavam na torneira. As latas em fila. Assim que cheguei a
Florenciana perguntou-me:
– De que partido é aquela faixa?
Li P.S.B. e respondi Partido
Social Brasileiro. Passou o Senhor Germano, ela perguntou novamente:
– Senhor Germano, esta faixa é de
que partido?
– Do Janio!
Ela rejubilou-se e começou dizer
que o Dr. Ademar de Barros é um ladrão. Que só as pessoas que não presta é que
aprecia e acata o Dr. Adhemar. Eu, e D. Maria Puerta, uma espanhola muito boa,
defendiamos o Dr. Adhemar. D. Mari disse:
– Eu, sempre fui ademarista.
Gosto muito dele, e de D. Leonor.
A Florenciana perguntou:
– Ele já deu esmola a senhora?
– Já, deu o Hospital das
Clínicas.
Chegou a minha vez, puis a minha
lata para encher. A Florenciana prosseguiu elogiando o Janio. A agua começou
diminuir na torneira. Começaram a falar da Rosa. Que ela carregava agua desde
as 4 horas da madrugada, que ela lavava toda roupa em casa. Que ela precisa
pagar 20 cruzeiros por mês. Minha lata encheu, eu vim embora.
. . . Estive revendo os
aborrecimentos que tive esses dias (. . .) Suporto as contigências da vida
resoluta. Eu não consegui armazenar para viver, resolvi armazenar paciência.
Nunca feri ninguém. Tenho muito
senso! Não quero ter processos. O meu risgistro geral é 845.936.
Fui no deposito receber o
dinheiro de papel. 55 cruzeiros. Retornei depressa, comprei leite e pão.
Preparei Toddy para as crianças, arrumei os leitos, puis feijão no fogo, varri
o barraco. Chamei o Senhor Ireno Venancio da Silva para fazer um balanço para
os meninos. Para ver se eles permanece no quintal para os visinhos não brigar
com eles.
Dei-lhe 16 cruzeiros. Enquanto
ele fazia o balanço, eu fui ensaboar as roupas. Quando retornei, o Senhor Ireno
estava terminando o balanço. Fiz alguns reparos e ele terminou. Os meninos deu
valor ao balanço só na hora. Todos queriam balançar ao mesmo tempo!
Fechei a porta e fui vender as
latas. Levei os meninos. O dia está calido. E eu gosto que eles receba os raios
solares. Que suplicio! Carregar a Vera e levar o saco na cabeça. Vendi as latas
e os metais. Ganhei 31 cruzeiros. Fiquei contente. Perguntei:
– Seu Manoel, o senhor não errou
na conta?
– Não. Porque?
– Porque o saco de latas não
pesava tanto para eu ganhar 31 cruzeiros. É a quantia que eu preciso para pagar
a luz.
Despedi-me e retornei-me. Cheguei
em casa fiz o almoço. Enquanto as panelas fervia eu escrevi um pouco. Dei o
almoço as crianças, fui no Klabin catar papel. Deixei as crianças brincando no
quintal. Tinha muito papel. Trabalhei depressa pensando que aquelas bestas
humanas são capás de invadir o meu barracão e maltratar meus filhos. Trabalhei
apreensiva e agitada. A minha cabeça começou doer. Elas costuma esperar eu sair
para vir no meu barracão expancar os meus filhos. Justamente quando eu não
estou em casa. Quando as crianças estão sozinhas e não podem defender-se.
... Nas favelas, as jovens de 15
anos permanecem até a hora que elas querem. Mescla-se com as meretrizes, contam
suas aventuras (...) Há os que trabalham. E há os que levam a vida a torto e a
direito. As pessoas de mais idade trabalham, os jovens é que renegam o
trabalho. Tem as mães, que catam frutas e legumes nas feiras. Tem as igrejas
que dá pão. Tem o São Francisco que todos os meses dá mantimentos, café, sabão,
etc.
... Ela vai na feira, cata cabeça
de peixe, tudo que pode aproveitar. Come qualquer coisa. Tem estomago de
cimento armado (...) As vezes eu ligo o radio e danço com as crianças,
simulando uma luta de boxe. Hoje comprei marmelada para eles. Assim que dei um
pedaço a cada um percebi que eles me dirigiam um olhar terno. E o meu João José
disse:
– Que mamãe bôa!
Quando as mulheres feras invade o
meu barraco, os meus filhos lhes joga pedras. Elas diz:
– Que crianças mal educadas!
Eu digo:
– Os meus filhos estão
defendendo-me. Vocês são incultas, não pode compreender. Vou escrever um livro
referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudos que vocês me
fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me
fornece os argumentos.
A Silvia pediu-me para retirar o
seu nome do meu livro. Ela disse:
– Você é mesmo uma vagabunda.
Dormia no Albergue Noturno. O seu fim era acabar na maloca.
Eu disse:
– Está certo. Quem dorme no
Albergue Noturno são os indigentes. Não tem recurso e o fim é mesmo nas
malocas, e Você, que diz nunca ter dormido no Albergue Noturno, o que veio
fazer aqui na maloca? Você era para estar residindo numa casa própria. Porque a
sua vida rodou igual a minha?
Ela disse:
– A única coisa que você sabe
fazer é catar papel.
Eu disse:
– Cato papel. Estou provando como
vivo!
... Estou residindo na favela.
Mas se Deus me ajudar hei de mudar daqui. Espero que os políticos estingue as
favelas. Há os que prevalecem do meio em que vive, demonstram valentia para
intimidar os fracos. Há casa que tem cinco filhos e a velha é quem anda o dia
inteiro pedindo esmola. Há as mulheres que os esposos adoece e elas no penado
da enfermidade mantem o lar. Os esposos quando vê as esposas manter o lar, não
saram nunca mais.
... Hoje não saí para catar
papel. Vou deitar. Não estou cançada e não tenho sono. Hontem eu bebi uma
cerveja. Hoje estou com vontade de beber outra vez. Mas não vou beber. Não
quero viciar. Tenho responsabilidade. Os meus filhos! E o dinheiro gasto em
cerveja faz falta para o escencial. O que eu reprovo nas favelas são os pais
que mandam os filhos comprar pinga e dá as crianças para beber.
E diz:
– Ele tem lumbriga.
Os meus filhos reprova o álcool.
O meu filho João José diz:
– Mamãe, quando eu crescer, eu
não vou bebe. O homem que bebe não compra roupas. Não tem radio, não faz uma
casa de tijolo.
O dia de hoje me foi benéfico. As
rascôas da favela estão vendo eu escrever e sabe que é contra elas. Resolveram
me deixar em paz. Nas favelas, os homens são mais tolerantes, mais delicados.
As bagunceiras são as mulheres. As intrigas delas é igual a de Carlos Lacerda
que irrita os nervos. E não há nervos que suporta. Mas eu sou forte! Não deixo
nada impressionar-me profundamente. Não me abato.
20 de julho Deixei o leito as 4 horas para escrever. Abri a porta e
contemplei o céu estrelado. Quando o astro-rei começou despontar eu fui buscar
agua. Tive sorte! As mulheres não estavam na torneira. Enchi minha lata e
zarpei. (...) Fui no Arnaldo buscar o leite e o pão. Quando retornava encontrei
o senhor Ismael com uma faca de 30 centimetros mais ou menos. Disse-me que
estava a espera do Binidito e do Miguel para mata-los, que eles lhe expancaram
quando ele estava embriagado.
Lhe aconselhei a não brigar, que
o crime não trás vantagens a ninguém, apenas deturpa a vida. Senti o cheiro de
álcool, disisti. Sei que os ébrios não atende. O senhor Ismael quando não está
alcoolizado demonstra sua sapiência. Já foi telegrafista. E do Circulo
Exoterico. Tem conhecimentos bíblicos, gosta de dar conselhos. Mas não tem
valor. Deixou o álcool lhe dominar, embora seus conselhos seja útil para os que
gostam de levar a vida decente.
Preparei a refeição matinal. Cada
filho prefere uma coisa. A Vera, mingau de farinha de trigo torrada. O João
José, café puro. O José Carlos, leite brando. E eu, mingau de aveia.
Já que não posso dar aos meus
filhos uma casa decente para residir, procuro lhe dar uma refeição condigna.
Terminaram a refeição. Lavei os
utensílios. Depois fui lavar roupas. Eu não tenho homem em casa. É só eu e meus
filhos. Mas eu não pretendo relaxar. O meu sonho era andar bem limpinha, usar
roupas de alto preço, residir numa casa confortável, mas não é possível. Eu não
estou descontente com a profissão que exerço. Já habituei-me andar suja. Já faz
oito anos que cato papel. O desgosto que tenho é residir em favela.
... Durante o dia, os jovens de
15 e 18 anos sentam na grama e falam de roubo. E já tentaram assaltar o empório
do senhor Raymundo Guello. E um ficou carimbado com uma bala. O assalto teve
inicio as 4 horas. Quando o dia clareou as crianças catava dinheiro na rua e no
capinzal. Teve criança que catou vinte cruzeiros em moeda. E sorria exibindo o
dinheiro. Mas o juiz foi severo. Castigou impiedosamente.
Fui no rio lavar as roupas e
encontrei D. Mariana. Uma mulher agradável e decente. Tem 9 filhos e um lar
modelo. Ela e o esposo tratam-se com educação. Visam apenas viver em paz. E
criar filhos. Ela também ia lavar roupas. Ela disse-me que o Binidito da D.
Geralda todos os dias ia prêso. Que a Rádio Patrulha caçou de vir busca-lo.
Arranjou serviço para ele na cadeia. Achei graça. Dei risada!... Estendi as
roupas rapidamente e fui catar papel. Que suplicio catar papel atualmente!
Tenho que levar a minha filha Vera Eunice. Ela está com dois anos, e não gosta
de ficar em casa. Eu ponho o saco na cabeça e levo-a nos braços. Suporto o peso
do saco na cabeça e suporto o peso de Vera Eunice nos braços. Tem hora que
revolto-me. Depois domino-me. Ela não tem culpa de estar no mundo.
Refleti: preciso ser tolerante
com os meus filhos. Eles não tem ninguém no mundo a não ser eu. Como é pungente
a condição de mulher sozinha sem um homem no lar.
Aqui, todas impricam comigo.
Dizem que falo muito bem. Que sei atrair os homens. (...) Quando fico nervosa
não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no
quintal e escrevo.
... Não posso sair para catar
papel. A Vera Eunice não quer dormir, e nem o José Carlos. A Silvia e o marido
estão discutindo. Tem 9 filhos e não respeitam0se. Brigam todos os dias.
... Vendi o papel, ganhei 140
cruzeiros. Trabalhei em excesso, senti-me mal. Tomei umas pílulas de vida e
deitei. Quando eu ia dormindo despertava com a voz do senhor Antonio Andrade
discutindo com a esposa.
21 de julho Despertei com a voz de D. Maria perguntando-me se eu
queria comprar banana e alface. Olhei as crianças. Estavam dormindo. Fiquei
quieta. Quando eles vê as frutas sou obrigada a comprar. (...) Mandei o meu
filho João José no Arnaldo comprar açúcar e pão. Depois fui lavar roupas.
Enquanto as roupas corava eu sentei na calçada para escrever. Passou um senhor
e perguntou-me:
– O que escreve?
– Todas as lambanças que pratica
os favelados, estes projetos de gente humana.
Ele disse:
– Escreve e depois dá a um
crítico para fazer a revisão.
Olhou as crianças ao meu redor e
perguntou:
– Estes filhos são seus?
Olhei as crianças. Meu, era
apenas dois. Mas como todas eram da mesma cor, afirmei que sim.
– Seu marido onde trabalha?
– Não tenho marido, e nem quero!
Uma senhora que estava me olhando
escrever despediu-se. Pensei: talvez ela não tenha apreciado a minha resposta.
– É muito filho para sustentar.
Ele abriu a carteira. Pensei:
agora ele vai dar dinheiro a qualquer uma destas crianças pensando que todas
são meus filhos. Fui imprudente mentindo.
– Dá, eu té. Compá papato.
Eu disse:
– Ela está dizendo que quer o
dinheiro para comprar sapatos.
Ele disse:
– Dá para sua mãe.
Ergui os olhos para observá-lo.
Duas meninas lhe chamava papai! Eu conheço-o de vista. Já falei com ele na
farmácia quando levei a Vera para tomar injeção contra resfriado. Ele seguio.
Eu olhei o dinheiro que ele deu a Vera. Cem cruzeiros!
Em poucos minutos o boato
circulou que a Vera ganhou cem cruzeiros. E pensei na eficiência da língua
humana para transmitir uma noticia. As crianças aglomerava-se. Eu levantei e
fui sentar perto da casa de D. Mariana. E lhe pedir um pouco de café. Já
habituei beber café na casa do Seu Lino. Tudo que eu peço a eles emprestado,
eles empresta. Quando eu vou pagar, não recebem.
Depois fui torcer as roupas e vim
preparar o almoço. Hoje eu estou cantando. Estou alegre e já pedi aos visinhos
para não me aborrecer. Todos nois temos o nosso dia de alegria. Hoje é o meu!
... Uma menina por nome Amalia
diz a mãe que o espirito lhe pega. Saiu correndo para se jogar no rio. Varias
mulheres lhe impedio o gesto. Passei o resto da tarde escrevendo. As quatro e
meia o senhor Heitor ligou a luz. Dei banho nas crianças e preparei para sair.
Fui catar papel, mas estava indisposta. Vim embora porque o frio era demais.
Quando cheguei em casa era 22,30. Liguei o radio. Tomei banho. Esquentei
comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler.
Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem.
22 de julho ...Tem hora que revolto com a vida atribulada que levo.
E tem hora que me conformo. Conversei com uma senhora que cria uma menina de cor.
É tão bôa para a menina... Lhe compra vestidos de alto preço. Eu disse:
– Antigamente eram os pretos que
criava os brancos. Hoje são os brancos que criam os pretos.
A senhora disse que cria a menina
desde 9 meses. E que a negrinha dorme com ela e que lhe chama de mãe.
Surgiu um moço. Disse ser seu
filho. Contei umas anedotas. Eles riram e eu segui cantando.
Comecei catar papel. Subi a rua
Tiradentes, cumprimentei as senhoras que conheço. A dona da tinturaria disse:
– Coitada! Ela é tão boazinha.
Fiquei repetindo no pensamento:
“Ela é boazinha!”
... Eu gosto de ficar dentro de
casa, com as portas fechadas. Não gosto de ficar nas esquinas conversando.
Gosto de ficar sozinha e lendo. Ou escrevendo! Virei na rua Frei Antonio
Galvão. Quase não tinha papel. A D. Nair Barros estava na janela. (...) Eu
falei que residia em favela. Que favela é o pior cortiço que existe.
...Enchi dois sacor na rua
Alfredo Maia. Lei um até ao ponto e depois voltei para levar outro. Percorri
outras ruas. Conversei um pouco com o senhor João Pedro. Fui na casa de uma
preta levar umas latas que ela havia pedido. Latas grandes para plantar flores.
Fiquei conhecendo uma pretinha muito limpinha que falava muito bem. Disse ser
costureira, mas que não gostava da profissão. E que admirava-me. Catar papel e
cantar.
Eu sou muito alegre. Todas manhãs
eu canto. Sou como as aves, que cantam apenas ao amanhecer. De manhã estou
sempre alegre. A primeira coisa que faço é abri a janela e contemplar o espaço.
23 de julho ... Liguei o radio para ouvir o drama. Fiz o almoço e
deitei. Dormi uma hora e meia. Nem ouvi o final da peça. Mas, eu já conhecia a
peça. Comecei fazer o meu diário. De vez em quando parava para repreender os
meus filhos. Bateram na porta. Mandei o João José abrir mandar entrar. Era o
seu João. Perguntou-me onde encontrar folhas de batatas para sua filha buchecar
um dente. Eu disse que na Portuguesinha era possível encontrar. Quis saber o
que eu escrevia. Eu disse ser o meu diário.
– Nunca vi uma preta gostar tanto
de livros como você. Todos tem um ideal. O meu é gostar de ler. O Seu João deu
cinquenta centavos para cada menino. Quando ele me conheceu eu tinha só os dois
meninos.
Ninguém tem me aborrecido. Graças
a Deus.
24 de julho Levantei cinco horas para ir buscar agua. Hoje é
domingo, as favelas recolhem agua mais tarde. Mas eu já habituei-me levantar
cedo. Comprei pão e sabão. Puis feijão no fogo e fui lavar roupas. No rio
chegou Adair Mathias, lamentando que sua mãe tinha saído, e ela tinha que fazer
almoço e lavar roupas. Disse que sua mãe era forte, mas que agora lhe puzeram
feitiço. Que o curador disse que era a feiticeira. Mas o feitiço que invade a
família Mathias é o álcool. Esta é a minha opinião.
A D. Mariana lamentava que seu
esposo estava demorando a regressar. Puis as roupas para quarar e vim fazer o
almoço. Quando cheguei em casa encontrei a D. Francisca brigando com meu filho
João José. Uma mulher de quarenta anos discutindo com uma criança de seis anos.
Puis o menino para dentro e fechei o portão. Ela continuou falando. Para fazer
ela calar é preciso lhe dizer:
– Cala a boca tuberculosa!
Não gosto de aludir os males
físicos porque ninguém tem culpa de adquirir moléstias contagiosas. Mas quando
a gente percebe que não pode tolerar a impricandia do analfabeto, apela para as
enfermidades.
O Seu João veio buscar as folhas
de batatas. Eu disse-lhe:
– Se eu pudesse mudar desta
favela! Tenho a impressão que estou no inferno.
... Sentei ao sol para escrever.
A filha da Silvia, uma menina de seis anos, passava e dizia:
– Está escrevendo, negra fidida!
A mãe ouvia e não repreendia. São
as mães que instigam.
25 de julho Amanheci contente. Estou contando. As únicas horas que
tenho socêgo aqui na favela é de manhã.
... Hoje a D. Francisca mandou
sua filha de sete anos provocar-me, mas eu estava com muito sono. Fechei a
porta e deitei. (...) Fui visitar o filho recém nascido de D. Maria Puerta, uma
espanhola de primeira. A jóia da favela. É o ouro no meio de chumbo.
27 de julho Levantei de manhã e fui buscar agua. Discuti com o
esposo da Silvia porque ele não queria deixar eu encher minhas latas. Não tinha
dinheiro em casa. Esquentei comida amanhecida e dei aos meninos.
... O Senhor Ireno disse-me que
esta noite houve roubo na favela. Que roubaram roupas da D. Florela e mil
cruzeiros de D. Paulina. O meu barracão também está sendo visado. Duas noites
que não saio para catar papel. Para evitar aborrecimentos, eu levei o radio
para a casa de D. Florela. E eu que estou querendo comprar uma maquina de
costura...
... Seu Gino veio dizer-me para
eu ir no quarto dele. Que eu estou lhe despresando. Disse-lhe: Não!
É que eu estou escrevendo um
livro, para vende-lo. Viso com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da
favela. Não tenho tempo para ir na casa de ninguém. Seu Gino insistia. Ele
disse:
– Bate que eu abro a porta.
Mas o meu coração não pede para
eu ir no quarto dele.
28 de julho ... Fiquei horrorizada! Haviam queimado meus cinco
sacos de papel. A neta de D. Elvira, a que tem duas meninas e que não quer mais
filhos porque o marido ganha pouco, disse:
– Nós vimos a fumaça. Tambem a
senhora poe os sacos ali no caminho. Ponhe lá no mato onde ninguém os vê. Eu
ouvi dizer que vocês lá da favela vivem uns roubando os outros.
Quando elas falam não sabem dizer
outra coisa a não ser roubo. Percebi que foi ela quem queimou meus sacos.
Resolvi retirar com nojo delas. Aliás já haviam dito-me que eles são uns
portugueses malvados. Que a D. Elvira nunca fez um favor a ninguém. Para eu
ficar prevenida. Não estou ressentida. Já estou tão habituada com a maldade
humana.
Sei que os sacos vão me fazer
falta.
(Fim do diário de 1955)
2 de maio de 1958 Eu não sou indolente. Há tempos que eu
pretendia fazer o meu diario. Mas eu pensava que não tinha valor e achei que
era perder tempo.
...Eu fiz uma
reforma em mim. Quero tratar as pessoas que eu conheço com mais atenção. Quero
enviar um sorriso amavel as crianças e aos operarios.
...Recebi
intimação para comparecer as 8 horas da noite na Delegacia do 12. Passei o dia
catando papel. A noite os meus pés doiam tanto que eu não podia andar. Começou
chover. Eu ia na Delegacia, ia levar o José Carlos. A intimação era para ele. O
José Carlos está com 9 anos.
3 de maio ...Fui na feira da Rua Carlos
de Campos, catar qualquer coisa. Ganhei bastante verdura. Mas ficou sem efeito,
porque eu não tenho gordura. Os meninos estão nervosos por não ter o que comer.
6 de maio De manhã não fui buscar agua. Mandei o João
carregar. Eu estava contente. Recebi outra intimação. Eu estava inspirada e os
versos eram bonitos e eu esqueci de ir na Delegacia. Era 11 horas quando eu
recordei do convite do ilustre tenente da 12ª Delegacia.
...O que eu
aviso aos pretendentes a politica, é que o povo não tolera a fome. É preciso
conhecer a fome para saber descrevê-la.
Estão
construindo um circo aqui na Rua Araguaia. Circo Theatro Nilo.
9 de maio ...Eu cato papel, mas não gosto.
Então eu penso: Faz de conta que eu estou sonhando.
10 de maio
Fui na delegacia e falei com o tenente. Que homem amavel! Se eu
soubesse que ele era tão amavel, eu teria ido na delegacia na primeira
intimação. (...) O tenente interessou-se pela educação dos meus filhos.
Disse-me que a favela é um ambiente propenso, que as pessoas tem mais
possibilidades de delinquir do que tornar-se util a patria e ao país. Pensei:
Se ele sabe disto, porque não faz um relatorio e envia para os politicos? O
Senhor Janio Quadros, o Kubstchek e o Dr. Adhemar de Barros? Agora falar para
mim, que sou uma pobre lixeira. Não posso resolver nem as minhas dificuldades.
...O Brasil
precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é
professora.
Quem passa
fome aprende a pensar no proximo, e nas crianças.
11 de maio Dias das Mães. O céu está
azul e branco. Parece que até a Natureza quer homenagear as mães que atualmente
se sentem infeliz por não poder realisar os desejos dos seus filhos.
... O sol vai
galgando. Hoje não vai chover. Hoje é o nosso dia.
... A D.
Teresinha veio visitar-me. Ela deu-me 15 cruzeiros. Disse-me que era para a
Vera ir no circo. Mas eu vou deixar o dinheiro para comprar pão amanhã, porque
eu só tenho 4 cruzeiros.
... Ontem eu
ganhei metade de uma cabeça de porco no Frigorifico. Comemos a carne e guardei
os ossos. E hoje puis os ossos para ferver. E com o caldo fiz as batatas. Os
meus filhos estão sempre com fome. Quando eles passam muita fome eles não são
exigentes no paladar.
... Surgiu a noite.
As estrelas estão ocultas. O barraco está cheio de pernilongos. Eu vou acender
uma folha de jornal e passar pelas paredes. É assim que os favelados matam
mosquitos.
13 de maio Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpatico para mim. É
o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos.
... Nas prisões os negros eram os
bodes espiatorios. Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos trata com
desprêso. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz.
Continua chovendo. E eu tenho só
feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos para a escola.
Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no senhor Manuel vender os
ferros. Com o dinheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. A chuva passou
um pouco. Vou sair.
... Eu tenho tanto dó dos meus
filhos. Quando eles vê as coisas de comer eles brada:
– Viva a mamãe!
A manifestação agrada-me. Mas eu
já perdi o habito de sorrir. Dez minutos depois eles querem mais comida. Eu
mandei o João pedir um pouquinho de gordura a Dona Ida. Ela não tinha.
Mandei-lhe um bilhete assim:
– "Dona Ida peço-te se pode
me arranjar um pouco de gordura, para eu fazer uma sopa para os meninos. Hoje
choveu e eu não pude ir catar papel. Agradeço. Carolina."
... Choveu, esfriou. E o inverno
que chega. E no inverno a gente come mais. A Vera começou pedir comida. E eu
não tinha. Era a reprise do espetaculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia
comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha a
Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos.
E assim no dia 13 de maio de 1958
eu lutava contra a escravatura atual – a fome!
15 de maio Tem noite que eles improvisam uma batucada e não deixa
ninguem dormir. Os visinhos de alvenaria já tentaram com abaixo assinado
retirar os favelados. Mas não conseguiram. Os visinhos das casas de tijolos
diz:
– Os politicos protegem os
favelados.
Quem nos protege é o povo e os
Vicentinos. Os politicos só aparecem aqui nas epocas eleitoraes. O senhor
Cantidio Sampaio quando era vereador em 1953 passava os domingos aqui na
favela. Ele era tão agradavel. Tomava nosso café, bebia nas nossas xícaras. Ele
nos dirigia as suas frases de viludo. Brincava com nossas crianças. Deixou boas
impressões por aqui e quando candidatou-se a deputado venceu. Mas na Camara dos
Deputados não criou um progeto para beneficiar o favelado. Não nos visitou
mais.
... Eu classifico São Paulo
assim: O Palacio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a
cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.
... A noite está tepida. O céu já
está salpicado de estrelas. Eu que sou exotica gostaria de recortar um pedaço do
céu para fazer um vestido. Começo ouvir uns brados. Saio para a rua. É o Ramiro
que quer dar no senhor Binidito. Mal entendido. Caiu uma ripa no fio da luz e
apagou a luz da casa do Ramiro. Por isso o Ramiro queria bater no senhor
Binidito. Porque o Ramiro é forte e o senhor Binidito é fraco.
O Ramiro ficou zangado porque eu
fui a favor do senhor Binidito. Tentei concertar os fios. Enquanto eu tentava
concertar o fio o Ramiro queria expancar o Binidito que estava alcoolisado e não
podia parar de pé. Estava inconciente. Eu não posso descrever o efeito do alcool
porque não bebo. Já bebi uma vez, em carater experimental, mas o alcool não me
tonteia.
Enquanto eu pretendia concertar a
luz o Ramiro dizia:
– Liga a luz, liga a luz sinão eu
te quebro a cara.
O fio não dava para ligar a luz.
Precisava emendá-lo. Sou leiga na eletricidade. Mandei chamar o senhor Alfredo,
que é o atual encarregado da luz. Ele estava nervoso. Olhava o senhor Binidito
com desprêso. A Juana que é esposa do Binidito deu cinquenta cruzeiros para o
senhor Alfredo. Ele pegou o dinheiro. Não sorriu. Mas ficou alegre. Percebi
pela sua fisionomia. Enfim o dinheiro dissipou o nervosismo.
16 de maio Eu amanheci nervosa. Porque eu queria ficar em casa, mas
eu não tinha nada para comer.
... Eu não ia comer porque o pão
era pouco. Será que é só eu que levo esta vida? O que posso esperar do futuro?
Um leito em Campos do Jordão. Eu quando estou com fome quero matar o Janio,
quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades corta o afeto
do povo pelos politicos.
17 de maio Levantei nervosa. Com vontade de morrer. Já que os
pobres estão mal colocados, para que viver? Será que os pobres de outro País
sofrem igual aos pobres do Brasil? Eu estava discontente que até cheguei a
brigar com o meu filho José Carlos sem motivo.
... Chegou um caminhão aqui na
favela. O motorista e o seu ajudante jogam umas latas. É linguiça enlatada.
Penso: É assim que fazem esses comerciantes insaciaveis. Ficam esperando os
preços subir na ganancia de ganhar mais. E quando apodrece jogam fora para os
corvos e os infelizes favelados.
Não houve briga. Eu até estou
achando isto aqui monotono. Vejo as crianças abrir as latas de linguiça e
exclamar satisfeitas:
– Hum! Tá gostosa!
A Dona Alice deu-me uma para
experimentar. Mas a lata está estufada. Já está podre.
18 de maio ... Na favela tudo circula num minuto. E a noticia já
circulou que a Dona Maria José faleceu. Varias pessoas vieram vê-la. Compareceu
o vicentino que cuidava dela. Ele vinha visitá-la todos os domingos. Ele não
tem nojo dos favelados. Cuida dos miseros favelados com carinho. Isto competia
ao tal Serviço Social.
...Chegou o esquife. Côr roxa.
Côr da amargura que envolve os corações dos favelados.
A Dona Maria era crente e dizia
que os crentes antes de morrer já estão no céu.
O enterro é as treis da tarde.
Os crentes estão entoando um
hino. As vozes são afinadas. Tenho a impressão que são anjos que cantam. Não
vejo ninguem bebado. Talvez seja por respeito a extinta. Mas duvido. Acho que é
porque eles não tem dinheiro.
Chegou o carro para conduzir o
corpo sem vida de Dona Maria José que vai para a sua verdadeira casa propria
que é a sepultura. A Dona Maria José era muito boa. Dizem que os vivos devem
perdoar os mortos. Porque todos nós temos os nossos momentos de fraquesa.
Chegou o carro funebre. Estão esperando a hora para sair o enterro.
Vou parar de escrever. Vou torcer
as roupas que ensaboei ontem. Não gosto de ver enterros.
19 de maio Deixei o leito as 5 horas. Os pardais já estão iniciando
a sua sinfonia matinal. As aves deve ser mais feliz que nós. Talvez entre elas reina
amizade e igualdade. (...) O mundo das aves deve ser melhor do que dos favelados,
que deitam e não dormem porque deitam-se sem comer.
... O que o senhor Juscelino tem
de aproveitavel a voz. Parece um sabiá e a sua voz é agradavel aos ouvidos. E
agora, o sabiá está residindo na gaiola de ouro que o Catête. Cuidado sabiá,
para não perder esta gaiola, porque os gatos quando estão com fome contempla as
aves nas gaiolas. E os favelados são os gatos. Tem fome.
... Deixei de meditar quando ouvi
a voz do padeiro:
– Olha o pão doce, que está na
hora do café!
Mal sabe ele que na favela é a
minoria quem toma café. Os favelados comem quando arranjam o que comer. Todas
as familias que residem na favela tem filhos. Aqui residia uma espanhola Dona
Maria Puerta. Ela comprou um terreno e começou economisar para fazer a casa.
Quando terminou a construção da casa os filhos estavam fracos do pulmão. E são
oito crianças.
... Havia pessoas que nos
visitava e dizia:
– Credo, para viver num lugar
assim só os porcos. Isto aqui é o chiqueiro de São Paulo.
... Eu estou começando a perder o
interesse pela existência. Começo a revoltar. E a minha revolta é justa.
... Lavei o assoalho porque estou
esperando a visita de um futuro deputado e ele quer que eu faça uns discursos
para ele. Ele disse que pretende conhecer a favela, que se for eleito há de
abolir as favelas.
... Contemplava extasiada o céu cor
de anil. E eu fiquei compreendendo que eu adora o meu Brasil. O meu olhar posou
nos arvoredos que existe no inicio da rua Pedro Vicente. As folhas movia-se.
Pensei: elas estão aplaudindo este meu gesto de amor a minha Patria. (. . .)
Toquei o carrinho e fui buscar mais papeis. A Vera ia sorrindo. E eu pensei no
Casemiro de Abreu, que disse: "Ria criança. A vida é bela". Só se a
vida era boa naquele tempo. Porque agora a epoca está apropriada para dizer:
"Chora criança. A vida é amarga".
... Eu ando tão preocupada que
ainda não contemplei os jardins da cidade E epoca das flores brancas, a cor que
predomina. É o mês de Maria e os altares deve estar adornados com flores
brancas. Devemos agradecer Deus, ou a Natureza que nos deu as estrelas para
adornar o céu, e as flores para adornar os prados e as varzeas e os bosques.
Quando eu seguia na Avenida
Cruzeiro do Sul ia uma senhora com um sapato azul e uma bolsa azul. A Vera
disse-me:
– Olha mamãe. Que mulher bonita!
Ela vai no meu carro.
É que a minha filha Vera Eunice
diz que vai comprar um carro só para carregar as pessoas bonitas. A mulher
sorrio e a Vera prosseguio:
– A senhora é cheirosa!
Percebi que a minha filha sabe
bajular. A mulher abriu a bolsa e deu-lhe 20 cruzeiros.
... Aqui na
favela quase todos lutam com dificuldades para viver. Mas quem manifesta o que
sofre é só eu. E faço isto em prol dos outros. Muitos catam sapatos no lixo
para calçar. Mas os sapatos já estão fracos e aturam só 6 dias. Antigamente,
isto é de 1950 até 1956, os favelados cantavam. Faziam batucadas. 1957, 1958, a
vida foi ficando causticante. Já não sobra dinheiro para eles comprar pinga. As
batucadas foram cortando-se até extinguir-se. Outro dia eu encontrei um
soldado. Perguntou-me:
– Você ainda mora na favela?
– Porque?
– Porque vocês deixaram a Radio
Patrulha em paz.
– É o dinheiro que não sobra para
a aguardente.
...Deitei o João e a Vera e fui
procurar o José Carlos. Telefonei para a Central. Nem sempre o telefone resolve
as coisas. Tomei o bonde e fui. Eu não sentia frio. Parece que o meu sangue
estava a 40 graus. Fui falar com a Policia Feminina que me deu a noticia do
José Carlos que estava lá na rua Asdrubal Nascimento. Que alivio! Só quem é mãe
é que pode avaliar.
...Eu dirigi para a rua Asdrúbal
Nascimento (NOTA 1: Na
Rua Asdrubal Nascimento funciona o juizado de Menores.). Eu não sei andar
a noite. A fusão das luzes desviam-me do roteiro. Preciso ir perguntando. Eu
gosto da noite só para contemplar as estrelas sintilantes, ler e escrever.
Durante a noite há mais silencio.
Cheguei na rua Asdrúbal
Nascimento, o guarda mandou-me esperar. Eu contemplava as crianças; Umas
choravam, outras estavam revoltadas com a interferência da Lei que não lhes
permite agir a sua vontade. O José Carlos estava chorando. Quando ouviu a minha
voz ficou alegre. Percebi o seu contentamento. Olhou-me. E foi o olhar mais
terno que eu já recebi até hoje.
... As oito e meia da noite eu já
estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro
podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com
seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando
estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar
num quarto de despejo.
20 de maio O dia vinha
surgindo quando eu deixei o leito. A Vera despertou e cantou. E convidou-me
para cantar. Cantamos. O João e o José Carlos tomaram parte.
Amanheceu garoando. O Sol está
elevando-se. Mas o seu calor não dissipa o frio. Eu fico pensando: tem época
que é Sol que predomina. Tem epoca que é a chuva. Tem epoca que é o vento.
Agora é a vez do frio. E entre eles não deve haver rivalidades. Cada um por sua
vez.
Abri a janela e vi as mulheres
que passam rapidas com seus agasalhos descorados e gastos pelo tempo. Daqui a
uns tempos estes palitol que elas ganharam de outras e que de há muito devia
estar num museu, vão ser substituidos por outros. É os politicos que há de nos
dar. Devo incluir-me, porque eu também sou favelada. Sou rebotalho. Estou no
quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no
lixo.
... As mulheres que eu vejo
passar vão nas igrejas buscar pães para os filhos. Que o Frei Luiz lhes dá,
enquanto os esposos permanecem debaixo das cobertas. Uns porque não encontram
emprego. Outros porque estão doentes. Outros porque embriagam-se.
... Eu não preocupo-me com os
homens delas. Se fazem bailes eu não compareço porque não gosto de dançar. Só
interfiro-me nas brigas onde prevejo um crime. Não sei a origem desta antipatia
por mim. Com os homens e as mulheres eu tenho um olhar duro e frio. O meu
sorriso, as minhas palavras ternas e suaves, eu reservo para as crianças.
... Tem um adolescente por nome
Julião que as vezes expanca o pai. Quando bate no pai é com tanto sadismo e
prazer. Acha que é invencível. Bate como se estivesse batendo num tambor. O pai
queria que ele estudasse para advocacia (...) Quando o Julião vai preso o pai
lhe acompanha com os olhos rasos dagua. Como se estivesse acompanhando um santo
no andor. O Julião é revoltado, mas sem motivo. Eles não precisa residir na
favela. Tem casa no Alto de Vila Maria.
... As vezes mudam algumas
famílias para a favela, com crianças. No inicio são iducadas, amaveis. Dias
depois usam o calão, são soezes e repugnantes. São diamantes que transformam em
chumbo. Transformam-se em objetos que estavam na sala de visita e foram para o
quarto de despejo.
... Para mim o mundo em vez de
evoluir está retornando a primitividade. Quem não conhece a fome há de dizer:
"Quem escreve isto é louco". Mas quem passa fome há de dizer:
– Muito bem, Carolina. Os gêneros
alimenticios deve ser ao alcance de todos.
Como é horrível ver um filho
comer e perguntar: “Tem mais?". Esta palavra "tem mais" fica
oscilando dentro do cerebro de uma mãe que olha as panelas e não tem mais.
... Quando um politico diz nos
seus discursos que e tá ao lado do povo, que visa incluir-se na politica para
melhorar as nossas condições de vida pedindo o nosso voto prometendo congelar
os preços, já está ciente que abordando este grave problema ele vence nas urnas.
Depois divorcia-se do povo. Olha o povo com os olhos semi-cerrados. Com um
orgulho que fere a nossa sensibilidade.
... Quando cheguei do palácio que
é a cidade os meus filhos vieram dizer-me que havia encontrado macarrão no
lixo. E a comida era pouca, eu fiz um pouco do macarrão com feijão. E o meu
filho João José disse-me:
– Pois é. A senhora disse-me que
não ia mais comer as coisas do lixo.
Foi a primeira vez que vi a minha
palavra falhar. Eu disse:
– É que eu tinha fé no Kubstchek.
– A senhora tinha fé e agora não
tem mais?
– Não, meu filho. A democracia
está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz tudo está enfraquecendo. O dinheiro
é fraco. A democracia é fraca e os politicos fraquissimos. E tudo que está
fraco, morre um dia.
... Os politicos sabem que eu sou
poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido.
21 de maio Passei uma noite horrivel. Sonhei que eu residia numa
casa residivel, tinha banheiro, cozinha, copa e até quarto de criada. Eu ia
festejar o aniversario de minha filha Vera Eunice. Eu ia comprar-lhe umas
panelinhas que há muito ela vive pedindo. Porque eu estava em condições de
comprar. Sentei na mesa para comer. A toalha era alva ao lirio. Eu comia bife,
pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar outro bife despertei.
Que realidade amarga! Eu não residia na cidade. Estava na favela. Na lama, as
margens do Tietê. E com 9 cruzeiros apenas. Não tenho açucar porque ontem eu
saí e os meninos comeram o pouco que eu tinha.
... Quem deve dirigir é quem tem
capacidade. Quem tem dó e amisade ao povo. Quem governa o nosso país é quem tem
dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre. Se a maioria
revoltar-se, o que pode fazer a minoria? Eu estou ao lado do pobre, que é o
braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o paiz dos políticos açambarcadores.
Eu ontem comi aquele macarrão do
lixo com receio de morrer, porque em 1953 eu vendia ferro lá no Zinho. Havia um
pretinho bonitinho. Ele ia vender ferro lá no Zinho. Ele era jovem e dizia que
quem deve catar papel são os velhos. Um dia eu ia vender ferro quando parei na
Avenida Bom Jardim. No Lixão, como é denominado o local. Os lixeiros haviam
jogado carne no lixo. E ele escolhia uns pedaços: Disse-me:
– Leva, Carolina. Dá para comer.
Deu-me uns
pedaços. Para não maguá-lo aceitei. Procurei convencê-lo a não comer aquela
carne. Para comer os pães duros ruidos pelos ratos. Ele disse-me que não. Que
há dois dias não comia. Acendeu o fogo e assou a carne. A fome era tanta que ele
não poude deixar assar a carne. Esquentou-a e comeu. Para não presenciar aquele
quadro, saí pensando: faz de conta que eu não presenciei esta cena. Isto não
pode ser real num paiz fertil igual ao meu. Revoltei contra o tal Serviço
Social que diz ter sido criado para reajustar os desajustados, mas não toma
conhecimento da existencia infausta dos marginais. Vendi os ferros no Zinho e
voltei para o quintal de São Paulo, a favela.
No outro dia encontraram o
pretinho morto. Os dedos do seu pé abriram. O espaço era de vinte centímetros.
Ele aumentou-se como se fosse de borracha. Os dedos do pé parecia leque. Não
trazia documentos. Foi sepultado como um Zé qualquer. Ninguem procurou saber
seu nome. Marginal não tem nome.
... De quatro em quatro anos
muda-se os politicos e não soluciona a fome, que tem a sua matriz nas favelas e
as sucursaes nos lares dos operarios.
... Quando eu fui buscar agua vi
uma infeliz caida perto da torneira porque ontem dormiu sem jantar. É que ela
está desnutrida. Os medicos que nós temos na politica sabem disto.
... Agora eu vou na casa da Dona
Julita trabalhar para ela. Fui catando papel. O senhor Samuel pesou. Recebi 12
cruzeiros. Subi a Avenida Tiradentes catando papel. Cheguei na rua Frei Antonio
Santana de Galvão 17, trabalhar para a Dona Julita. Ela disse-me para eu não
iludir com os homens que eu posso arranjar outro filho e que os homens não
contribui para criar o filho. Sorri e pensei: em relação aos homens, eu tenho experiencias
amargas. Já estou na maturidade, quadra que o senso já criou raizes.
... Achei um cará no lixo, uma
batata doce e uma batata solsa.
Cheguei na favela os meus meninos estavam roendo um pedaço de pão duro. Pensei:
para comer estes pães era preciso que eles tivessem dentes eletricos.
Não tinha
gordura. Puis a carne no fogo com uns tomates que eu catei lá na Fabrica Peixe.
Puis o cará e a batata. E agua. Assim que ferveu eu puis o macarrão que os meninos
cataram no lixo Os favelados aos poucos estão convencendo-se que para viver
precisam imitar os corvos. Eu não vejo eficiencia no Serviço Social em relação
ao favelado. Amanhã não vou ter pão. Vou cozinhar a batata doce.
22 de maio Eu hoje estou triste. Estou nervosa. Não sei se choro ou
saio correndo sem parar até cair inconciente. É que hoje amanheceu chovendo. E
eu não saí para arranjar dinheiro. Passei o dia escrevendo. Sobrou macarrão, eu
vou esquentar para os meninos. Cosinhei as batatas, eles comeram. Tem uns
metais e um pouco de ferro que eu vou vender no Seu Manuel. Quando o João
chegou da escola eu mandei ele vender os ferros. Recebeu 13 cruzeiros. Comprou
um copo de agua mineral, 2 cruzeiros. Zanguei com ele. Onde já se viu favelado
com estas finezas?
... Os meninos come muito pão. Eles
gostam de pão mole. Mas quando não tem eles comem pão duro.
Duro é o pão que nós comemos.
Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado.
Oh! São Paulo rainha que ostenta
vaidosa a tua coroa de ouro que são os arranha-céus. Que veste viludo e seda e
calça meias de algodão que é a favela.
... O dinheiro não deu para
comprar carne, eu fiz macarrão com cenoura. Não tinha gordura, ficou horrível.
A Vera é a única que reclama e pede mais. E pede:
– Mamãe, vende eu para a Dona
Julita, porque lá tem comida gostosa.
Eu sei que existe brasileiros
aqui dentro de São Paulo que sofre mais do que eu. Em junho de 1957 eu fiquei
doente e percorri as sedes do Serviço Social. Devido eu carregar muito ferro fiquei
com dor nos rins. Para não ver os meus filhos passar fome fui pedir auxilio ao
propalado Serviço Social. Foi lá que eu vi as lagrimas deslisar dos olhos dos
pobres. Como é pungente ver os dramas que ali se desenrola. A ironia com que
são tratados os pobres. A unica coisa que eles querem saber são os nomes e os
endereços dos pobres.
Fui no Palacio, o Palacio
mandou-me para a sede na Av. Brigadeiro Luís Antonio. Avenida Brigadeiro me
enviou para o Serviço Social da Santa Casa. Falei com a Dona Maria Aparecida
que ouviu-me e respondeu-me tantas coisas e não disse nada. Resolvi ir no Palacio
e entrei na fila. Falei com o senhor Alcides. Um homem que não é niponico, mas
é amarelo como manteiga deteriorada. Falei com o senhor Alcides:
– Eu vim aqui pedir um auxilio
porque estou doente. O senhor mandou me ir na Avenida Brigadeiro Luis Antonio,
eu fui. Avenida Brigadeiro mandou-me ir na Santa Casa. E eu gastei o unico
dinheiro que eu tinha com as conduções.
– Prende ela!
Não me deixaram sair. E um
soldado pois a baioneta no meu peito. Olhei o soldado nos olhos e percebi que ele
estava com dó de mim. Disse-lhe:
– Eu sou pobre, porisso é que vim
aqui.
Surgiu o Dr. Osvaldo de Barros, o
falso filantropico de São Paulo que está fantasiado de São Vicente de Paula. E
disse:
– Chama um carro de preso!
23 de maio Levantei de manhã
triste porque estava chovendo. (...) O barraco está numa desordem horrivel. É
que eu não tenho sabão para lavar as louças. Digo loiça por hábito. Mas é as
latas. Se tivesse sabão eu ia lavar as roupas. Eu não sou desmazelada. Se ando
suja é devido a reviravolta da vida de um favelado. Cheguei a conclusão que
quem não tem de ir pro céu, não adianta olhar para cima. É igual a nós que não
gostamos da favela, mal somos abrigados a residir na favela.
... Fiz a comida. Achei bonito a
gordura frigindo na panela. Que espetaculo deslumbrante! As crianças sorrindo
vendo a comida ferver nas panelas. Ainda mais quando é arroz e feijão, é um dia
de festa para eles.
Antigamente
era a macarronada o prato mais caro. Agora é o arroz e feijão que suplanta a
macarronada. São os novos ricos. Passou para o lado dos fidalgos. Até vocês,
feijão e arroz, nos abandona! Vocês que eram os amigos dos marginais, dos
favelados, dos indigentes. Vejam só. Até o feijão nos esqueceu. Não está ao
alcance dos infelizes que estão no quarto de despejo. Quem não nos despresou
foi o fubá. Mas as crianças não gostam de fubá.
Quando puis a comida o João
sorriu. Comeram e não aludira a cor negra do feijão. Porque negra é a nossa
vida. Negro é que nos rodeia.
... Nas ruas e casas comerciais já
se vê as faixas indicando os nomes dos futuros deputados. Alguns nomes já são
conhecidos. São reincidentes que já foram preteridos nas urnas. Mas o povo não
está interessado nas eleições, que é o cavalo de Troia que aparece de quatro em
quatro anos.
... O céu é belo, digno de
contemplar porque as nuvens vagueiam e formam paisagens deslumbrantes. As
brisas suaves perpassam conduzindo os perfumes das flores. E o astro rei sempre
pontual para despontar-se e recluir-se. As aves percorrem o espaço demonstrando
contentamento. A noite surge as estrelas cintilantes para adornar o céu azul.
Há varias coisas belas no mundo que não é possivel descrever-se. Só uma coisa
nos entristece: os preços, quando vamos fazer compras. Ofusca todas as belezas
que existe.
A Theresa irmã da Meyri bebeu
soda. E sem motivo. Disse que encontrou um bilhete de uma mulher no bolso do
seu amado. Perdeu muito sangue. Os médicos diz que se ela sarar ficará imprestavel.
Tem dois filhos, um de 4 anos e outro de 9 meses.
26 de maio Amanheceu chovendo. E eu tenho só 4 cruzeiros, e um
pouco de comida que sobrou de ontem e uns ossos. Fui buscar agua para por os
ossos ferver. Ainda tem um pouco de macarrão, eu faço uma sopa para os meninos.
Vi uma visinha lavando feijão. Fiquei com inveja. (...) Faz duas semanas que eu
não lavo roupas por não ter sabão. Vendi umas taboas por 40 cruzeiros. A mulher
disse-me que paga hoje. Se ela pagar eu compro sabão.
... Ha dias que não vinha policia
aqui na favela, e hoje veio, porque o Julião deu no pai. Deu-lhe uma cacetada com
tanta violencia, que o velho chorou e foi chamar a policia.
Parte II
27 de maio ... Percebi que no Frigorifico jogam creolina no lixo,
para o favelado não catar a carne para comer. Não tomei café, ia andando meio
tonta. A tontura da fome é pior do que a do alcool. A tontura do alcool nos
impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrivel ter só ar
dentro do estomago.
Comecei sentir a boca amarga.
Pensei: já não basta as amarguras da vida? Parece que quando eu nasci o
destino, marcou-me para passar fome. Catei um saco de papel. Quando eu penetrei
na rua Paulino Guimarães, uma senhora me deu uns jornais. Eram limpos, eu
deixei e fui para o deposito. Ia catando tudo que encontrava. Ferro, lata,
carvão, tudo serve para o favelado. O Leon pegou o papel, recibi seis cruzeiros.
Pensei guardar o dinheiro para comprar feijão. Mas, vi que não podia porque o
meu estomago reclamava e torturava-me.
... Resolvi tomar uma media e
comprar um pão. Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu
que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi,
tudo normalizou-se aos meus olhos.
... A comida no estomago é como o
combustivel nas maquinas. Passei a trabalhar mais depressa. O meu corpo deixou
de pesar. Comecei andar mais depressa. Eu tinha impressão que eu deslisava no
espaço. Comecei sorrir como se estivesse presenciando um lindo espetaculo. E
haverá espetaculo mais lindo do que ter o que comer? Parece que eu estava
comendo pela primeira vez na minha vida.
... Chegou a
Radio Patrulha, que veio trazer dois negrinhos que estavam vagando na Estação
da Luz. 4 e 6 anos. É fácil perceber que eles são da favela. São os mais
maltrapilhos da cidade. O que vão encontrando pelas ruas vão comendo. Cascas de
banana, casca de melancia e até casca de abacaxi, que é tão rústica, eles
trituram. (...) Estavam com os bolsos cheios de moedas de alumínio, o novo
dinheiro em circulação.
28 de maio Amanheceu chovendo. Tenho só treis cruzeiros porque
emprestei 5 para Leila ir buscar a filha no hospital. Estou desorientada, sem
saber o que iniciar. Quero escrever, quero trabalhar, quero lavar roupa. Estou
com frio. E não tenho sapato para calçar. Os sapatos dos meninos estão furados.
... E o pior na favela é o que as
crianças presenciam. Todas crianças da favela sabem como é o corpo de uma
mulher. Porque quando os casais que se embriagam brigam, a mulher, para não
apanhar sai nua para a rua. Quando começa as brigas os favelados deixam seus
afazeres para presenciar os bate-fundos. De modo que quando a mulher sai
correndo nua é um verdadeiro espetaculo para o Zé Povinho. Depois começam os
comentários entre as crianças:
– A Fernanda saiu nua quando o
Armim estava lhe batendo.
– Eu não vi. Ah! Que pena!
– E que jeito é a mulher nua?
E o outro para citar-lhe
aproxima-lhe a boca do ouvido. E ecoa-se as gargalhadas estrepitosas. Tudo que
é obseno pornografico o favelado aprende com rapidez.
... Tem barracões de meretrizes
que praticam suas cenas amorosas na presença das crianças.
... Os visinhos ricos de
alvenaria dizem que nós somos protegidos pelos politicos. É engano. Os politicos
só aparece aqui no quarto de despejo, nas epocas eleitorais. Este ano já
tivemos a visita do candidato a deputado Dr. Paulo de Campos Moura, que nos deu
feijão e otimos cobertores. Que chegou numa epoca oportuna, antes do frio.
... O que eu
quero esclarecer sobre as pessoas que residem na favela é o seguinte: quem tira
proveito aqui são os nortistas. Que trabalham e não dissipam. Compram casa ou
retornam-se ao Norte.
Aqui na favela há os que fazem
barracões para residir e os que fazem para alugar. E os alugueis são 500 a
700,00. E os que fazem barracões para vender. Gasta 4 mil cruzeiros e vendem
por 11 mil cruzeiros. Quem fez muitos barracões para vender foi o Tiburcio.
29 de maio Até que enfim parou de chover. As nuvens deslisa-se para
o poente. Apenas o frio nos fustiga. E varias pessoas da favela não tem
agasalhos. Quando uns tem sapatos, não tem palitol. E eu fico condoida vendo as
crianças pisar na lama. (...) Percebi que chegaram novas pessoas para a favela.
Estão maltrapilhas e as faces desnutridas. Improvisaram um barracão. Condoí-me
de ver tantas agruras reservadas aos proletarios. Fitei a nova companheira de
infortunio. Ela olhava a favela, suas lamas e suas crianças pauperrimas. Foi o
olhar mais triste que eu já presenciei. Talvez ela não mais tem ilusão.
Entregou sua vida aos cuidados da vida.
... Há de existir alguém que
lendo o que eu escrevo dirá... isto é mentira! Mas, as miserias são reais.
... O que eu revolto é contra a
ganancia dos homens que espremem uns aos outros como se espremesse uma laranja.
30 de maio ... Troquei a Vera e saimos. Ia pensando: será que Deus
vai ter pena de mim? Será que eu arranjo dinheiro hoje? Será que Deus sabe que
existe as favelas e que os favelados passam fome?
... O José Carlos chegou com uma
sacola de biscoitos que catou no lixo. Quando eu vejo eles comendo as coisas do
lixo penso: E se tiver veneno? É que as crianças não suporta a fome. Os biscoitos
estavam gostosos. Eu comi pensando naquele provérbio: quem entra na dança deve
dançar. E como eu também tenho fome, devo comer.
Chegaram novas
pessoas para a favela. Estão esfarrapadas, andar curvado e os olhos fitos no
solo como se pensasse na sua desdita por residir num lugar sem atração. Um lugar
que não se pode plantar uma flor para aspirar o seu perfume, para ouvir o
zumbido das abelhas ou o colibri acariciando-a com seu frágil biquinho. O unico
perfume que exala na favela é a lama podre, os excrementos e a pinga.
... Hoje ninguém vai dormir
porque os favelados que não trabalham já estão começando a fazer batucada.
Lata, frigideira, panelas, tudo serve para acompanhar o cantar desafinado dos
notivagos.
31 de maio Sábado — o dia que quase fico louca porque preciso
arranjar o que comer para sábado e o domingo. (...) Fiz o café, e os pães que
eu ganhei ontem. Puis feijão no fogo. Quando eu lavava o feijão pensava: eu
hoje estou parecendo gente bem — vou cozinhar feijão. Parece até um sonho!
... Ganhei bananas e mandiocas na
quitanda da rua Guaporé. Quando eu voltava para a favela, na Avenida Cruzeiro
do Sul 728 uma senhora pediu-me para eu ir jogar um cachorro morto dentro do
Tietê que ela dava-me 5 cruzeiros. Deixei a Vera com a mulher e fui. O cachorro
estava dentro de um saco. A mulher ficou observando os meus passos à
paulistana. Quer dizer andar depressa. Quando voltei ela deu-me 6 cruzeiros.
Quando recebi os 6 cruzeiros pensei: já dá para comprar um sabão.
... Cheguei na favela: eu não
acho geito de dizer cheguei em casa. Casa é casa. Barracão é barracão. O
barraco tanto no interior como no exterior estava sujo. E aquela desordem
aborreceu-me. Fitei o quintal, o lixo podre exalava mau cheiro. Só aos domingos
que eu tenho tempo de limpar.
Eu havia comprado um ovo e 15
cruzeiros de banha no Seu Eduardo. E fritei o ovo para ver se parava as nauseas.
Parou. Percebi que era fraquesa. O medico mandou-me comer oleo mas eu não posso
comprar. (...) Fui fazendo o jantar. Arroz, feijão, pimentão e choriço e
mandioca frita. Quando a Vera viu tanta coisa disse: hoje é festa de negro!
... Perguntei a uma senhora que
vi pela primeira vez:
– A senhora está morando aqui?
– Estou. Mas faz de conta que não
estou, porque eu tenho muito nojo daqui. Isto aqui é lugar para os porcos. Mas
se puzessem os porcos aqui, haviam de protestar e fazer greve. Eu sempre ouvi
falar na favela, mas não pensava que e era um lugar tão asqueroso assim. Só
mesmo Deus para ter dó de nós.
1 de junho É o inicio do
mês. É o ano que deslisa. E a gente vendo os amigos morrer e outros nascer.
(...) É treis e meia da manhã. Não posso durmir. Chegou o tal Vitor, o homem
mais feio da favela. O representante do bicho papão. Tão feio, e tem duas
mulheres. Ambas vivem juntas no mesmo barraco. Quando ele veio residir na favela
veio demonstrando valentia. Dizia:
– Eu fui vacinado com o sangue do
Lampeão!
Dia 1 de janeiro de 1958 ele
disse-me que ia quebrar-me a cara. Mas eu lhe ensinei que a é a e b é b. Ele é
de ferro e eu sou de aço. Não tenho força fisica, mas as minhas palavras ferem
mais do que espada. E as feridas são incicatrisaveis. Ele deixou de
aborrecer-me porque eu chamei a radio patrulha para ele, e ele ficou 4 horas
detido. Quando ele saiu andou dizendo que ia matar-me. Então o Adalberto
disse-lhe:
– É o pior negocio que você vai
fazer. Porque se você não matá-la ela é quem te mata. Eu tenho uma habilidade
que não vou relatar aqui, porque isto há de defender-me. Quem vive na favela
deve procurar isolar-se, viver só. O Vitor está tocando radio. Penso: hoje é
domingo e nós podiamos dormir até as 8. Mas aqui não há consideração mutua.
... Eu nada
tenho que dizer da minha saudosa mãe. Ela era muito boa. Queria que eu
estudasse para professora. Foi as contigencias da vida que lhe impossibilitou
concretizar o seu sonho. Mas ela formou o meu carater, ensinando-me a gostar
dos humildes e dos fracos. É porisso que eu tenho dó dos favelados. Se bem que
aqui tem pessoas dignas de desprêso, pessoas de espirito perverso. Esta noite a
Dona
Amelia e o seu companheiro
brigaram. Ela disse-lhe que ele está com ela por causa do dinheiro que ela lhe
dá. Só se ouvia a voz de Dona Amelia que demonstrava prazer na polemica. Ela
teve varios filhos. Distribuio todos. Tem dois filhos moços que ela não os quer
em casa. Pretere os filhos e prefere os homens.
O homem entra pela porta. O filho
é raiz do coração.
É quatro horas. Eu já fiz o
almoço — hoje foi almoço. Tinha arroz, feijão e repolho e linguiça. Quando eu
faço quatro pratos penso que ou alguem. Quando vejo meus filhos comendo arroz e
feijão, o alimento que não está ao alcance do favelado, fico sorrindo atôa.
Como se eu estivesse assistindo um espetaculo deslumbrante. Lavei as roupas e o
barracão. Agora vou ler e escrever. Vejo os jovens jogando bola. E eles correm
pelo campo demonstrando energia. Penso: se eles tomassem leite puro e comessem
carne. . .
2 de junho — Amanheceu fazendo frio. Acendi o fogo e mandei o João
ir comprar pão e café. O pão, o Chico do Mercadinho cortou um pedaço.
Eu chingueí o Chico de ordinario,
cachorro, eu queria ser um raio para cortar-lhe em mil pedaços. O pão não deu e
os meninos não levaram lanche.
... De manhã eu estou sempre
nervosa. Com medo de não arranjar dinheiro para comprar o que comer. Mas hoje é
segunda-feira e tem muito papel na rua. (. . .) O senhor Manuel apareceu
dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na
maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode
passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel
debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal. Ele
deu-me 50 cruzeiros e eu paguei a costureira. Um vestido que fez para a Vera. A
Dona Alice veiu queixar-se que o senhor Alexandre estava lhe insultando por
causa de 65 cruzeiros. Pensei: ah! o dinheiro! Que faz morte, que faz odio
criar raiz.
3 de junho ... Quando eu estava no ponto do bonde a Vera começou a
chorar. Queria pasteis. Eu estava só com 10 cruzeiros, 2 para pagar o bonde e 8
para comprar carne moida. A Dona Geralda deu-me 4 cruzeiros para eu comprar os
pasteis, ela comia e cantava. E eu pensava: o meu dilema é sempre a comida!
Tome o bonde. A Vera começou a chorar porque não queria ir em pé e não tinha
lugar para sentar.
... Quando eu estou com pouco
dinheiro procuro não pensar nos filhos que vão pedir pão, pão, café. Desvio meu
pensamento para o céu. Penso: será que lá em cima tem habitantes? Será que eles
são melhores do que nós? Será que o predominio de lá suplanta o nosso? Será que
as nações de lá é variada igual aqui na terra? Ou é uma nação unica? Será que
lá existe favela? E se lá existe favela será que quando eu morrer eu vou morar
na favela?
... Quando eu comecei escrever
ouvi vozes alteradas. Faz tanto tempo que não há briga na favela (...) Era a Odete
e o seu esposo que estão separados. Brigavam porque ele trouxe outra mulher no
carro que ele trabalha. Elas estavam na casa do Seu Francisco irmão do Alcino.
Sairam para a rua. Eu fui ver a briga. Agrediram a mulher que estava com o
Alcino. Quatro mulheres e um menino avançaram na mulher com tanto violencia e
lhe jogaram no solo. A Marli saiu. Disse que ia buscar uma pedra pra jogar na
cabeça da mulher. Eu puis a mulher no carro e o Alcino e mandei eles ir-se
embora. Pensei em ir chamar a Policia. Mas até a Policia chegar elas matavam a
mulher. O Alcino deu uns tapas na sogra, que é a pior agitadôra. Se eu não
entro para auxiliar o Alcino ele ia levar desvantagem. As mulheres da favela
são horriveis numa briga. O que podem resolver com palavras elas transformam em
conflito. Parecem corvos, numa disputa.
... A Odete revoltu-se comigo por
ter defendido o Alcino. Eu disse:
– Você tem quatro filhos para
criar.
– Eu não me importo. Eu queria era matá-la.
Quando eu empurrava a mulher para
dentro do carro, ela disse-me:
– Só a senhora é que é boa.
Eu tinha a impressão que estava
retirando um pedaço de osso da boca dos cachorros. E a Odete vendo o seu esposo
sair com a outra no carro, ficou furiosa. Vieram chingar-me de entrometida. Eu
penso que a violência não resolve nada. (...) Assembleia de favelados é com
paus, facas, pedradas e violências.
... A favela é o quarto das
surpresas. Esta é a quinta mulher que o Alcino traz aqui na favela. E a sua
esposa quando vê, briga.
... A favela hoje está quente.
Durante o dia a Leila e o seu companheiro Arnaldo brigaram. O Arnaldo é preto.
Quando veio para a favela era menino. Mas que menino! Era bom, iducado, meigo,
obidiente. Era o orgulho do pai e de quem lhe conhecia.
– Este vai ser um negro, sim
senhor!
É que na Africa os negros são
classificados assim:
– Negro tú.
– Negro turututú.
– É negro sim senhor!
Negro tú é o negro mais ou menos. Negro turututú é o que não vale nada. E o negro Sim Senhor é o da alta sociedade. Mas o Arnaldo transformou-se em
negro turututú depois que cresceu.
Ficou estupido, pornográfico, obceno e alcoolatra. Não sei como é que uma
pessoa pode desfazer-se assim. Ele é compadre da Dona Domingas.
Mas que compadre!
... Dona Domingas é uma preta boa
igual ao pão. Calma e util. Quando a Leila ficou sem casa foi morar com a Dona
Domingas.
... A Dona
Domingas era quem lavava a roupa da Leila, que lhe obrigou a dormir no chão e
lhe dar o leito. Passou a ser a dona da casa. Eu dizia:
– Reage, Domingas!
– Ela é feiticeira, pode botar um
feitiço em mim.
– Mas o feitiço não existe.
– Existe sim. Eu vi ela fazê.
É porque a Leila andava dizendo
que consertava vidas. E eu vi varias senhoras ricas aparecer por aqui. Havia a
tal Dona Guiomar, Edviges Gonçalves, a mulher que tem varios nomes e varias
residências porque compra a prestação e não paga e dá o nome trocado onde
compra. Quando sai na rua parece a Maria Antonieta. E a Dona Guiomar concorreu
para escravisar a Dona Domingas. (...) A Dona Domingas recebe uma pensão do seu
extinto espôso. E era obrigada a dar dinheiro para a Leila que é companheira do
Arnaldo. Ele sendo compadre da Domingas, era para defender a comadre. Mas ele
explorava. Dividia o dinheiro entre os dois. E ainda praticava suas cenas
amorosas perto do afilhado.
... A Dona Domingas saiu de casa.
Foi para Carapicuiba, morar com Dona Iracema. Ficou o seu filho Nilton. Eu fiz
tudo para retirar o menino. Mas a Leila
lhe dizia:
– Eu sou feiticeira. Se você for
embora eu faço você virar um elefante.
Eu encontrava o Nilton:
– Bom dia, Nilton. Você não quer
ir com a tua mãe?
– Eu não vou porque a Leila
disse-me que ela é feiticeira e se eu for embora ela vai fazer eu virar um
elefante e o elefante é um bicho muito muito feio. Sabe, Dona Carolina, e se
ela fazer eu virar um porco? Eu tenho que comer lavagem e alguem há de querer
me por num chiqueiro para eu engordar. Vão me capar. E se ela fazer eu virar um
cavalo, alguem há de me por para puchar uma carroça e ainda me dá chibatada.
... Quando o Nilton começou
passar fome, foi com a mãe. Pensei: a fome também serve de juiz.
Um dia eu discutia com a Leila.
Ela e o Arnaldo puzeram fogo no meu barracão. Os vizinhos apagaram.
5 de junho ... Mas eu já observei os nossos politicos. Para
observá-los fui na Assembleia. A sucursal do Purgatorio, porque a matriz é a
sede do Serviço Social, no palácio do Governo. Foi lá que eu vi ranger de
dentes. Vi os pobres sair chorando. E as lagrimas dos pobres comove os poetas.
Não comove os poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das
favelas, um expectador que assiste e observa as trajedias que os políticos representam
em relação ao povo.
6 de junho ... O José Carlos faz dias que não para em casa. Quando
chega para dormir é dez e meia da noite. Hoje de manhã ele apanhou. Avisei-lhe
que se chegar as 10 da noite não abro a porta. (...) Comprei um pão as 2 horas.
É 5 horas, fui partir um pedaço já está duro (...) O pão atual fez uma dupla
com o coração dos politicos. Duro, diante do clamor publico.
... Hoje brigaram aqui na favela.
Brigaram por causa de um cachorro. A briga foi com uns baianos que só falavam
em peixeiras.
7 de junho Os meninos
tomaram café e foram a aula. Eles estão alegres porque hoje teve café. Só quem
passa fome ó que dá valor a comida.
Eu e a Vera fomos catar papel.
Passei no Frigorífico para pegar linguiça. Contei 9 mulheres na fila. Eu tenho
a mania de observar tudo, contar tudo, marcar os fatos.
Encontrei muito papel nas ruas.
Ganhei 20 cruzeiros. Fui no bar tomar uma media. Uma para mim e outra para a
Vera. Gastei 11 cruzeiros. Fiquei catando papel até as 11 e meia. Ganhei 50
cruzeiros.
... Quando eu era menina o meu
sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia a Historia do Brasil e
ficava sabendo que existia guerra. Só lia os nomes masculinos como defensor da
patria. Então eu dizia para a minha mãe:
– Porque a senhora não faz eu
virar homem?
Ela dizia:
– Se você passar por debaixo do
arco-iris você ira homem.
Quando o arco-iris surgia eu ia
correndo na sua direção. Mas o arco-iris estava sempre distanciando. Igual os
politicos distante do povo. Eu cançava e sentava. Depois começava a chorar. Mas
o povo não deve cançar. Não deve chorar. Deve lutar para melhorar o Brasil para
os nossos filhos não sofrer o que estamos sofrendo. Eu voltava e dizia para a
mamãe:
– O arco-iris foge de mim.
... Nós somos pobres, viemos para
as margens do rio. As margens do rio são os lugares do lixo e dos marginais.
Gente da favela é considerado marginais. Não mais se vê os côrvos voando as
margens do rio, perto dos lixos. Os homens desempregados substituíram os côrvos.
Quando eu fui catar papel encontrei
um preto. Estava rasgado e sujo que dava pena. Nos seus trajes rôtosêle podia
representar-se como diretor do sindicato dos miseraveis. O seu olhar era um
olhar angustiado como se olhasse o mundo com desprêso. Indigno para um ser
humano. Estava comendo uns doces que a fabrica havia jogado na lama. Ele
limpava o barro e comia os doces. Não estava embriagado, mas vacilava no andar.
Cambaleava. Estava tonto de fome!
... Encontrei com êle outra vez,
perto do deposito edisse-lhe:
– O senhor espera que eu vou vender
este papel e dou-te cinco cruzeiros para o senhor tomar uma media. É bom beber
um cafezinho de manhã.
– Eu não quero. A senhora cata
êstes papeis com tantas dificuldades para manter os teus filhos e deve receber
uma migalha e ainda quer dividir comigo Este serviço que a senhora faz é
serviço de cavalo. Eu já sei o que ou fazer da minha vida. Daqui uns dias eu
não vou precisar de mais nada deste mundo. Eu não pude viver nas fazendas. Os
fazendeiros me explorava muito. Eu não posso trabalhar na cidade porque aqui
tudo é a dinheiro e eu não encontro emprêgo porque já sou idoso. Eu sei que eu
vou morrer porque a fome é a pior das enfermidades.
... O homem parou de falar
bruscamente. Eu segui com o meu saco de papel nas costas.
... Tem pessoas que aos sábados
vão dançar. Eu não danço. Acho bobagem ficar rodando pra aqui, pra ali. Eu já
rodo tanto para arranjar dinheiro para comer.
Procurei a Vera, não encontrei.
Gritei, não apareceu. Fui na Purtuguesa de Desportos. Já está iniciando os festejos
juninos. Ela não estava lá. Fui no ponto de bonde treis vezes. Eu já estava
pensando ir no Juizado de Menores, ia gastar o dinheiro reservado para o pão.
Quando cheguei na favela para pegar os documentos, para eu ir na cidade, a Vera
estava procurando-me. Disse-me que estava procurando balões. E que estava
cançada de correr.
8 de junho — ... Hoje eu fiz almôço. Quando tem carne... eu fico
mais animada. Mas, quando é polenta eu já sei que vou ter complicações com as
crianças. Feijão, arroz e pasteis. Já faz tempo que os meninos estão pedindo
pasteis. O João está sorrindo atôa. O pasteis é um acontecimento aqui em casa.
Quando eu digo casa, penso que
estou ofendendo as casas de tijôlos. Hoje os favelados estão apreciando os
briguentos. São dois irmãos. O Vicente e o João Coque. Lá em frente ao
mercadinho estão brigando dois baianos, e são irmãos. Nem parece que geraram no
mesmo ventre.
... Os visinhos de alvenaria olha
os favelados com repugnância. Percebo seus olhares de odio porque eles não quer
a favela aqui. Que a favela deturpou o bairro. Que tem nojo da pobrêsa.
Esquecem eles que na morte todos ficam pobres.
O que eu sei é que a praga dos
favelados pega. Quando nós mudamos para a favela, nós iamos pedir agua nos visinhos
de alvenaria. Quem nos dava agua era a Dona Ida Cardoso. Treis vezes ela nos
deu agua. Ela nos disse que nos dava agua só nos dias úteis. Aos domingos ela
queria dormir até mais tarde. Mas o favelado não é burro. Mas foi vacinado com
sangue de burro. Um dia foram buscar agua e não encontraram a torneira do
jardim, onde os favelados pegava agua. Formou-se uma fila na porta ia Dona Ida.
E todas chamavam:
– Eu queria agua para fazer a
mamadeira. Meus Deus, como é que nós vamos fazer sem agua?
Nois iamos noutras casas, batiamos
na porta. Ninguem respondia. Não aparecia ninguem para nos atender, para não
ouvir isto:
— A senhora pode nos dar um pouco
dagua?
Eu carregava agua da rua Guaporé.
Do deposito de papel. Outros trazia agua do Serviço, nos garrafões.
Uma tarde de terça-feira. A sogra
de Dona Ida estava sentada e disse:
– Podia dar uma enchente e
arrazar a favela e matar estes pobres cacêtes. Tem hora que eu revolto contra
Deus por ter posto gente pobre no mundo, que só serve para amolar os outros.
A Tina da Dona Mulata, quando
soube que a sogra da Dona Ida pedia a Deus para enviar uma enchente para mal ir
os pobres favelados, disse:
– Quem há de morrer afogado há de
ser ela!
Na enchente de 49 morreu o Pedro
Cardoso, filho de Dona Ida. Quando eu soube que o Pedrinho havia morrido
afogado pensei na decepção que teve a sua avó que pedia agua, agua, bastante
agua para matar os favelados e veio agua e matou-lhe o neto. É para ela
compreender que Deus é sobrio. É o advogado dos humildes. Os pobres são criaturas
de Deus. E o dinheiro é um metal criado e valorisado pelo homem. (...) Se Deus
avisasse a Dona Ida que ela por não nos dar agua ia perder o seu filho para
sempre, creio que ela estaria nos dando agua até hoje. O Pedro pagou em
holocausto o orgulho de sua avó. E a maldade de sua mãe. É assim que Deus
repreende.
9 de junho ... Eu saí.
Quando eu estava catando papel em frente a Bela Vista eu tive um aviso que eu
ia ter aborrecimento. Fiquei triste. Quando eu passava na rua Pedro Vicente um
senhor deu uma bichiga de borracha para a Vera. Ela ficou contente e disse que ele
ia para o céu.
... Quando nasceu a Vera eu
fiquei sosinha aqui na favela. Não apareceu uma mulher para lavar minhas
roupas, olhar os meus filhos. Os meus filhos dormiam sujos. Eu fiquei na cama
pensando nos filhos, com medo deles ir brincar nas margens do rio. Depois do
parto a mulher não tem forças para erguer um braço. Depois do parto eu fiquei
numa posição incomoda. Até quando Deus deu-me forças para ajeitar-me.
... Eu já estava deitada quando
ouvi as vozes das crianças anunciando que estavam passando cinema na rua. Não
acreditei no que ouvia. Resolvi ir ver. Era a Secretaria da Saúde. Veio passar
um filme para os favelados ver como é que o caramujo transmite a doença
anêmica. Para não usar as aguas do rio. Que as larvas desenvolve-se nas aguas.
(...) Até a agua... que em vez de nos auxiliar, nos contamina. Nem o ar que respiramos,
não ó puro, porque jogam lixo aqui na favela.
Mandaram os favelados fazer mictorios.
11 de junho ... Já faz seis meses que eu não pago a agua. 25
cruzeiros por mês. E por falar na agua, o que eu não gosto e tenho pavor é de
ir buscar agua. Quando as mulheres aglomeram na torneira, enquanto esperam a
sua vez para encher a lata vai falando de tudo e de todos. Se uma mulher está
engordando, elas dizem que está gravida. Se está emagrecendo elas dizem que
está tuberculosa. Temos aqui a Dona Binidita que está com 82 anos. Começou
engordar. . .
– É filho! A Dona Binidita está
gravida.
– Não diga! Naquela idade?
– Isto é o fim do mundo!
– De quantos meses?
Seis, sete, a data que vinha na
mente. E quando alguem ia levar roupinhas para a Dona Binidita ela chingava e
rogava praga. Dizia:
– Eu sou mãe da que já saiu da circulação.
Como é que eu posso ter filho? Eu já estou aposentada.
Quando eu ouvia os rumores
pensava: quem teve filhos nesta idade foi só Santa Isabel, mãe de São João
Batista.
Todos os dias há uma novidade
aqui na favela. Quando inaugurou a Purtuguesa de Desportos os purtugueses que
reside aqui por perto foram. E a Dona Isaltina esqueceu umas roupas no quintal.
No outro dia não encontrou as roupas. A Dona Sebastiana disse para a Dona
Isaltina que a ladra era a Leila. A Dona Isaltina foi chamar a Radio Patrulha.
E ela interrogava a Leila com tanta energia que acabou descobrindo as roupas no
fosso de excrementos. Pegaram um pau e retiraram as roupas. E a policia obrigou
a Leila lavar. Um carro da Prefeitura que vinha trazer agua jogava agua e a
Leila lavava. Ela dizia.
– Não fui eu quem tirou as
roupas. Eu sou vagabunda, mas não sou ladra.
O povo da favela sempre achava
tempo para presenciar estes espetaculos. (...) O juiz pegou uma jovem debil mental.
Disseram que ela havia fugido com um japonês. Hoje ela apareceu e disse ser
mentira.
Eu fui na Dona Julita. Ela deu-me
café, sabão e pão. Na Avenida do Estado 1140 ganhei muito papel. Recebi 98 cruzeiros.
Deu para comprar oleo, carne e açucar, Ganhei umas bananas, fiz doce. O José
Carlos está mais calmo depois que botou os vermes, 21 vermes.
12 de junho Eu deixei o leito as 3 da manhã porque quando a gente
perde o sono começa pensar nas misérias que nos rodeia. (...) Deixei o leito
para escrever. Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro
que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata a as luzes de brilhantes.
Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas qualidades. (...) É preciso criar este ambiente
de fantasia, para esquecer que estou na favela.
Fiz o café e fui carregar agua.
Olhei o céu, a estrela Dalva já estava no céu. Como é horrivel pisar na lama.
As horas que sou feliz é quando
estou residindo nos castelos imaginarios.
... O tal Valdemar hoje agrediu o
senhor Alexandre com uma enxada. As mulheres interviram. Eu fico admirada do
senhor Alexandre temer o Valdemar. Porque as mulheres resulutas da favela
expancam o Valdemar com vassouras e chinelos. Mas, quando alguem lhe teme, êle
prevalece.
13 de junho ...Vesti as crianças eêles foram para a escola. Eu fui
catar papel. No Frigorifico vi uma mocinha comendo salchichas do lixo.
— Você pode arranjar um emprego e
levar uma vida reajustada.
Ela perguntou-me se catar papel
ganha dinheiro. Afirmei que sim. Ela disse-me que quer um serviço para andar bem
bonita. Ela está com 15 anos. Epoca que achamos o mundo maravilhoso. Epoca em
que a rosa desabrocha. Depois vai caindo petala por petala e surgem os
espinhos. Uns cançam da vida, suicidam. Outros passam a roubar. (...) Olhei o
rosto da mocinha. Está com boqueira.
... Os preços aumentam igual as
ondas do mar. Cada qual mais forte. Quem luta com as ondas? Só os tubarões. Mas
o tubarão mais feroz é o racional. É o terrestre. É o atacadista.
A lentilha está a 100 cruzeiros o
quilo. Um fato que alegrou-me imensamente. Eu dancei, cantei e pulei. E agradeci
o rei dos juizes que é Deus. Foi em janeiro quando as aguas invadiu os armazéns
e estragou os alimentos. Bem feito. Em vez de vender barato, guarda esperando
alta de preços: Vi os homens jogar sacos de arroz dentro do rio. Bacalhaau,
queijo, doces. Fiquei com inveja dos peixes que não trabalham e passam bem.
Hoje eu estou lendo. E li o crime
do Deputado de Recife. Nei Maranhão. (. . .) li o jornal para as mulheres da
favela ouvir. Elas ficaram revoltadas e começaram chingar o assassino. E lhe
rogar praga. Eu já observei que as pragas dos favelados pegam.
... Os bons eu enalteço, os maus
eu critico. Devo reservar as palavras suaves para os operários, para os
mendigos, que são escravos da miséria.
14 de junho ... Está chovendo. Eu não posso ir catar papel. O dia
que chove eu sou mendiga, Já ando mesmo trapuda e suja. Já uso o uniforme dos
indigentes. E hoje é sabado. Os favelados são considerados mendigos. Vou aproveitar
a deixa. A Vera não vai sair comigo porque está chovendo. (...) Ageitei um
guarda-chuva velho que achei no lixo e saí. Fui no Frigorifico, ganhei uns
ossos. Já serve. Faço uma sopa. Já que a barriga não fica vazia, tentei viver
com ar. Comecei desmaiar. Então eu resolvi trabalhar porque eu não quero
desistir da vida.
Quero ver como é que eu vou
morrer. Ninguém deve alimentar a ideia de suicidio. Mas hoje em dia os que vivem
até chegar a hora da morte, é um herói. Porque quem não ó forte desanima.
... Vi uma senhora reclamar que
ganhou só ossos no Frigorifico e que os ossos estavam limpos.
— E eu gosto tanto de carne.
Fiquei nervosa ouvindo a mulher
lamentar-se porque é duro a gente vir ao mundo e não poder nem comer. Pelo que
observo, Deus é o rei dos sábios. Êle pois os homens e os animais no mundo. Mas
os animais quem lhes alimenta é a Natureza porque se os animais fossem
alimentados igual aos homens, havia de sofrer muito. Eu penso isto, porque
quando eu não tenho nada para comer, invejo os animais.
... Enquanto eu esperava na fila
para ganhar bolachas ia ouvindo as mulheres lamentar-se. Outra mulher reclamava
que passou numa casa e pediu uma esmola. A dona da casa mandou esperar (. . .)
A mulher continuou dizendo que a dona
da casa surgiu com um embrulho e deu-lhe. Ela não quiz abrir o embrulho perto das
colegas, com receio que elas pedissem. Começou pensar. Será um pedaço de
queijo? Será carne? Quando ela chegou em casa, a primeira coisa que fez, fois
desfazer o embrulho porque a curiosidade é amiga das mulheres. Quando desfez o
embrulho viu que eram ratos mortos.
Tem pessoas que zombam dos que
pedem.
Na fabrica de bolacha o homem
disse que não ia dar mais bolacha. Mas as mulheres continuaram quietas. E a
fila estava aumentando. Quando chegava alguém para comprar, êle explicava:
– O senhor desculpe o aspecto
hediondo que êste povo dá na porta da fabrica. Mas por infelicidade minha todos
os sabados é este inferno.
Eu ficava impaciente porque
queria ouvir o que o dono da fabrica dizia. E queria ouvir o que as mulheres
dizia. Que dilema triste para quem presencia. As pobres querendo ganhar. E o
rico não queria dar. Ele dá só os pedaços de bolacha. E elas saem contentes
como se fossem a Rainha Elisabete da Inglaterra quando recebeu os treze milhões
em jóias que o presidente Kubstchek lhe enviou como presente de aniversario.
O dono da fabrica vendo que elas
não iam embora, mandou dar. A empregada nos dava e dizia:
– Quem ganhar deve ir-se embora.
Eles alegam que não estão em
condições de dar esmola porque a farinha de trigo subiu muito. Mas os mendigos
já estão habituados a ganhar as bolachas todos os sábados.
Não ganhei bolacha e fui na
feira, catar verduras. Encontrei com a dona Maria do José Bento e começamos a
falar sobre o custo de vida.
15 de junho ... Fui comprar carne, pão e sabão. Parei na banca de
jornaes. Li que uma senhora e três filho havia suicidado por encontrar
dificuldade de viver. (...) A mulher que
suicidou-se não tinha alma de favelado, que quando tem fome recorre ao lixo,
cata verduras nas feiras, pedem esmola e assim vão vivendo. (...) Pobre mulher!
Quem sabe se de há muito ela vem pensando em eliminar-se, porque as mães tem
muito dó dos filhos. Mas é uma vergonha para uma nação. Uma pessoa matar-se
porque passa fome. E a pior coisa para uma mãe é ouvir esta sinfonia:
— Mamãe eu quero pão! Mamãe, eu
estou com fome!
Penso: será que ela procurou a
Legião Brasileira ou Serviço Social? Ela devia ir nos palácios falar com os
manda chuva.
... A noticia do jornal deixou-me
nervosa. Passei o dia chingando os políticos, porque eu também quando não tenho
nada para dar aos meus filhos fico quase louca.
... Aqui na favela tem um quadro
de foot-bol — O Rubro Negro. As
camisas são pretas e vermelhas. O fundador é o Almir Castilho. O quadro não é
conhecido pelo publico, mas já é conhecido pela policia. A dois anos atrás, o
quadro foi jogar na Penha e brigaram com o quadro adversário e a briga
transformou-se em conflito. Com a intervenção da policia os briguentos
renderam-se. E havia um morto e varios feridos. Não houve prisões. Mas abriram
inquérito. Cada um teve que pagar dois mil cruzeiros ao advogado.
... Hoje teve uma briga. Na rua A residem 10 baianos numa barracão de 3
por dois e meio. Cinco são irmãos. E as outras cinco são irmãs. São robustos,
mal incarados. Homens que havia de ter valor para o Lampeão. Os dez são pernambucanos.
E brigaram os dez com um paraibano. (...) Quando os pernambucanos avançaram no
paraibano as mulheres abraçaram o paraibano e levaram para dentro do barracão e
fecharam a porta. Os pernambucanos ficaram falando que matavam e repicavam o
paraibano. Queriam invadir o barracão. Estavam furiosos igual os cães quando
alguém lhes retira a cadela.
... Ela teve seis filhos: 3 do
Manôlo, e três de outros. Ela teve um menino que podia estar com 4 anos. Mas um
dia eles embriagaram, e brigaram
lutaram dentro de casa. A luta foi tremenda. O barraco oscilava. E as panelas
caiam fazendo ruídos. Na confusão, o menino caiu no assoalho e pisaram-lhe em
cima. Passado uns dias perceberam que o menino estava todo quebrado. Levaram
para o Hospital das Clinicas. Engessaram o menino. Mas os ossos não ligaram. O
menino morreu.
Agora ela está com duas meninas.
Uma de dois anos, e outra recem-nascida. O seu companheiro atual bebe e brigam.
E as vezes rolam no assoalho. Quando eu vejo estas cenas fico pensando no
menino que morreu.
... Tinha um soldado que aparecia
por aqui. Ele procurava agradar-me. E eu, fugia dele. Caí na asneira de dizer
para a Leila que achava o soldado muito bonito, mas não queria nada com êle
porque êle bebe pinga. E um dia êle veio falar comigo, cheirando a pinga. Uma
noite apareceu e perguntou-me:
– Então, Dona Carolina, a senhora
anda dizendo que eu bebo pinga?
Recordei imediatamente da Leila,
porque eu tinha dito só para ela. Respondi:
– Eu acho o senhor bonito, mas
tenho medo do senhor beber pinga.
... Percibi que o soldado não
apreciou minhas observações.
– O senhor sabe que o soldado
alemão não pode beber?
O soldado olhou-me e disse:
– Graças a Deus, sou brasileiro!
16 de junho ... O José Carlos está melhor. Dei-lhe uma lavagem de
alho e uma chá de ortelã. Eu zombei do remedio da mulher, mas fui obrigada a
dar-lhe porque atualmente a gente se arranja como pode. Devido ao custo de
vida, temos que voltar ao primitivismo. Lavar nas tinas, cosinhar com lenha.
... Eu escrevia peças e
apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me:
– É pena você ser preta.
Esquecendo eles que eu adoro a
minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado
do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente.
E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É
indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta.
... Um dia, um branco disse-me:
– Se os pretos tivessem chegado
ao mundo depois dos brancos, aí os brancos podiam protestar com razão. Mas, nem
o branco nem o preto conhece a sua origem.
O branco é que diz que é
superior. Mas que superioridade apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o branco
bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome,
o negro também. A natureza não seleciona ninguém.
17 de junho Passei a noite assim: eu despertava e escrevia. Depois
eu adormecia novamente. As 5 da manhã a Vera começou vomitar. Eu dei-lhe um
calmante, ela dormiu. Quando a chuva passou eu aproveitei para sair. Catei um
saco de papel. (...) Eu recebi só 12 cruzeiros. Catei uns tomates e um pouco de
alho e vim para casa correndo porque a Vera está doente. Cheguei ela estava dormindo.
Com os meus ruidos ela despertou-se. Disse estar com fome. Fui comprar leite e
fiz um mingau para ela. Ela tornou e vomitou um verme. Depois levantou-se e
andou um pouco e deitou-se outra vez.
... Eu fui no Seu Manuel vender
uns ferros para arranjar dinheiro. Estou nervosa com medo da Vera piorar, porque
o dinheiro que eu tenho não dá para pagar medico. (...) Hoje eu estou rezando e
pedindo a Deus para a Vera melhorar.
18 de junho Hoje amanheceu chovendo. A Vera, ontem pois dois vermes
pela boca. Está com febre. Hoje não vai ter aulas, em homenagem ao Príncipe do
Japão.
19 de junho . . .A Vera ainda está doente. Ela disse-me que foi a
lavagem de alho que eu dei-lhe que lhe fez mal. Mas aqui na favela varias
crianças está atacadas com vermes.
O José Carlos não quer ir na
escola porque está fazendo frio e ele não tem sapato. Mas hoje é dia de exame, ele
foi. Eu fiquei com medo, porque o frio está congelando. Mas o que hei de fazer?
Eu saí e fui catar papel. Fui na
Dona Julita, ela estava na feira. Passei na sapataria para pegar o papel. O
saco estava pesado. Eu devia carregar o papel em duas viagem. Mas carreguei de
uma vez porque queria chegar em casa, porque a Vera estava doente e sosinha.
20 de junho ... Dei leite para a Vera. O que eu sei é que o leite
está sendo despesas extras e está prejudicando a minha minguada bolsa. Deitei a
Vera e saí. Eu estava tão nervosa! Acho que se eu estivesse num campo de
batalha, não ia sobrar ninguém com vida. Eu pensava nas roupas por lavar. Na
Vera. E se a doença fosse piorar? Eu não posso contar com o pai dela. Ele não
conhece a Vera. E nem a Vera conhece ele.
Tudo na minha vida é fantástico.
Pai não conhece filho, filho não conhece pai.
... Não tinha papeis nas ruas. E
eu queria comprar um par de sapatos para a Vera. (...) Segui catando papel. Ganhei
41 cruzeiros. Fiquei pensando na Vera, que ia bradar e chorar, porque ela
quando não tem o que calçar fica lamentando que não gosta de ser pobre. Penso:
se a miséria revolta até as crianças...
21 de junho ... Vesti o José Carlos para ir na escola.Quando eu
estava na rua, comecei ficar nervosa. Todos os dias é a mesma luta. Andar igual um judeu errante atraz de
dinheiro, e o dinheiro que se ganha não dá pra nada. Passei no Frigorifico,
ganhei uns ossos. Quando eu saí a Vera recomendou-me para trazer os sapatos.
Deixei o João brincando com ela, porque hoje não tem aula para o segundo ano.
Percorri varias ruas e não havia papel. Quando ganhei 30 cruzeiros, pensei: já
dá para pagar os sapatos da Vera. Mas era sabado e precisava arranjar dinheiro
para o domingo. E Vera já estava idealizando o cardápio de domingo. Na Avenida
Tiradentes eu ganhei uma folhas de flandres e fui vender no deposito do Senhor
Salvador Zanutti, na rua Voluntários da Patria. Eu estava de mal com êle. Mas
êle não me fez mal nenhum. Até emprestou-me dinheiro quando eu fiquei doente.
Quando eu fiquei doente eu andava até querendo suicidar por falta de recursos.
... O senhor Salvador
perguntou-me porque foi que eu sumi de lá. Eu fiquei envergonhada com a sua
acolhida tão gentil (...) Ele deu-me 31 cruzeiros. Fiquei alegre. Saí correndo.
Ia comprar os sapatos para a Vera. Lembrei que havia deixado a sacola no
deposito. Mas o transito estava impedido. Consegui atravessar para pegar a
sacola. Ele disse-me:
— Você saiu correndo e esqueceu a
sacola.
Catei mais um pouco de papel e
recebi 10 cruzeiros Fiquei com 71 cruzeiros. Dei 30 para os sapatos, fiquei com
41. E não ia dar para comprar café, pão açucar e arroz e gordura. Pensei nos
ossos. Eu ia fazer uma sopa. Tem um pouco de arroz, um pouco de macarrão. Eu misturo tudo e faço uma sopa. E a Vera se
quizer comer come, se não quizer que se aperte. A epoca atual não é de ter
preferencia e nem nojo. Cheguei em casa para ver a Vera. Ela estava brincando
Pensei: Ela já está melhor.
Ela estava coçando-se e com a
pele toda irritada. Acho que foi o chá de alho que lhe dei. Jurei nunca mais
dar-lhe remedios indicados por lavadeiras de hospitais. Mostrei-lhe os sapatos,
ela ficou alegre. Ela sorriu e disse-me: que está contente comigo e não vai
comprar uma mãe branca. Que não sou mentirosa. Que falei que ia comprar os
sapatos, e comprei. Que eu tenho palavra.
... Eu estava tão cançada. Eu queria
sair para arranjar mais dinheiro. Mas a canceira dominou-me. Ouvi as crianças gritar
que estão dando cartões. Corri como flexa. A canceira sumiu. Encontrei o João
que já vinha com um cartão acenando na mão. Todos estavam sorrindo como se
tivesse ganhado um premio. Li o cartão. Era para ir buscar um premio e uma surpresa para seu filho na rua Javaés 771.
22 de junho Deixei o leito as 5 horas, preparando as crianças parai
ir na festa na rua Javaés (...) Dei comida para a Vera. O João não quiz a minha
comida. Disse:
– Eu vou comer lá na festa. A
comida de lá deve ser melhor do que a da senhora.
Ele não gosta de festa. Mas se
êle sabe que vai ter comida é o primeiro a insistir e faz questão de levar a
sacola. (. . .) Passei na Dona Julita para dizer-lhe que nós iamos numa festa.
Pensei: deve ser banquete porque São Luiz Rei de França quando convidava o povo
para comer preparava um banquete. Tomei o bonde. O dinheiro não dava. Cheguei
lá as 2 horas. A fila estava enorme. Podia ter umas 3 mil pessoas. Quando eles
vieram nos convidar os favelados ficaram contentes. Os que não ganhou cartão
ficou chorando e dizendo que não tinha sorte. Percebi que o povo da favela gosta
de ganhar esmolas. Puzeram umas tabuas na calçada e forraram com jornaes e puzeram
os pães em cima. Ouvi uma mulher dizer:
– Não é ruim ser pobre.
Todos usava roupas humildes.
Alguns calçados outros descalços. Apareceu um preto alto e gordo como se fosse
decendente de elefante. Falava para todos ouvir.
– Eu não sou deputado. Sou
simplesmente amigo do povo humilde.
Comecei a escrever o que
observava daquela agromeração. O senhor Zuza viu-me escrevendo. Porque eu sou
alta e estava toda de vermelho. Fui falar-lhe. Perguntei-lhe:
– Quem é o senhor?
– O gente! Eu sou o Zuza! A
senhora nunca ouviu falar no Zuza? Pois o Zuza sou eu!
– Com que finalidade o senhor faz
esta festa?
– Faço esta festa para o povo.
– Eu vou por o senhor no jornal.
– Você pode me por onde você
quizer...
Não simpatizei com o tal Zuza.
Falta qualquer coisa naquele homem, para êle ser um homem completo. Ele notando
a impaciência do povo, dizia:
– Espera! Vocês estão mortos de
fome?
Vi mulher gravida desmaiar. O
Zuza deu uns pães para as mulheres, e mandou elas erguer os pães para o ar,
para ser fotografadas. Os carros e os onibus da CMTC encontrava dificuldades
para percorrer a rua devido as crianças que atravessavam a rua de um lado para
outro. A qualquer instante eu esperava um atropelamento. Alguns reclamava:
– Se eu soubesse que era só pão,
eu não vinha.
O senhor Zuza mandou dois violeiros
tocar e apareceu um palhaço. Que festa sem graça.
Era domingo e o povo ficou
expantado quando viu os indigentes superlotar o onibus Bom Retiro. Tivemos
sorte. Fomos com um cobrador que aceitava a quantia que nós dávamos. Uns dava 1
cruzeiro, outros dava só um passe. Tinha uma mulher com crianças que vieram de
Santos e ganhou só um pão e um saquinho de bala e uma régua escolar que estava
escrito Lembrança do Deputado Paulo
Teixeira de Camargo.
Tinha mulher que gastou vinte
cruzeiros nas conduções. E não ganharam nada. Onde estava a fila estava frio
por estar na sombra. Eu saí da fila e passei para o outro lado. Devido eu ter
bajulado inconcientemente o senhor Zuza, êle deu-me vários pães. Contei até
seis. Depois parei e pedi a Deus para êle não dar-me mais pães. Ouvi varias
mulheres lhe rogando praga. Tivemos
sorte ao voltar. Era o mesmo condutor. Eu estava com cinco crianças, e eu, seis.
Porisso eu fui obrigada a suplicar ao condutor que deixasse nós voltar por três
cruzeiros Era o unico dinheiro que eu tinha. A Vera ficou com os pés inchados
de tanto andar. Quando eu cheguei na favela vi as mulheres rogando praga no
Zuza. As mulheres que estavam com crianças não ganharam pão, porque não ia entrar
no meio do povo que dizia:
– Vamos pegar alguns pães para
não perder a viagem.
Encontrei o senhor Alexandre
brigando com o Vicente por causa de um metro que emprestou-lhe.
Era 6 horas quando apareceu um
carro. Era um senhor que havia casado e veio nos dar os sanduíches que sobrou.
Eu ganhei alguns. Depois os favelados invadiram o carro. Os moços foram embora
e disse que iam jogar os sanduíches no lixo que gente de favela sãoestupidos e
quadrupedes que estão precisando de ferraduras.
23 de junho ... Passei no açougue para comprar meio quilo de carne
para bife. Os preços era 24 e 28. Fiquei nervosa com a diferença dos preços. O
açougueiro explicou-me que o filé é mais caro. Pensei na desventura da vaca, a
escrava do homem. Que passa a existencia no mato, se alimenta com vegetais,
gosta de sal mas o homem não dá porque custa caro. Depois de morta é dividida.
Tabelada e selecionada. E morre quando o homem quer. Em vida dá dinheiro ao
homem. E morta enriquece o homem. Enfim, o mundo é como o branco quer. Eu não
sou branca, não tenho nada com estas desorganizações.
... Quando cheguei na favela os
meninos estavam brincando. Perguntei-lhes se alguém havia brigado com êles.
Responderam-me que só a baiana. Uma vizinha que tem 3 filhos. E que a Leila
brigou com o Arnaldo e queria jogar a sua filha recem-nascida dentro do rio
Tietê. E foram brigando até rua do Porto. E a Leila jogou a criança no chão. A
criança tem dois meses. (. . .) As
mulheres queriam ir chamar a polícia para levar a menina no Juizado. Eu estava
cançada, deitei. Não tive coragem nem de trocar roupa.
24 de junho Quando eu chegei
na favela encontrei com a Vera que estava na rua. Ela já sabe contar tudo que
presencia. Disse-me que a policia tinha vindo avisar que a mãe do Paredão tinha
morrido
Ela era muito boa. Só que bebia
muito.
... Eu estava fazendo o almoço
quando a Vera veio dizer-me que havia briga na favela. Fui ver. Era a Maria
Mathias que estava dando seu espetaculo histerico. Espetaculo da idade critica.
Só as mulheres e os médicos é quem vai entender o que eu disse.
... Os favelados todos os anos fazem
fogueiras Mas em vez de arranjar lenha rouba uns aos outros. Entram nos
quintaes e carregam as madeiras de outros favelados (...) Eu tinha um caibro, eles
levaram para queimar. Não se porque é que os favelados são tão nocivos. Alem deles
não ter qualidades ainda surgem os maus elementos que mesclam-se com eles. Quem
vem perturbar é o Chico, o Bom-Bril e o Valdemar. O Valdemar levanta de manha e
vem para a favela.
Porque este homem não vai
trabalhar? Ele não gosta de mim. (...) Eu gostava imensamente da mãe dele, Mas
a Dona Aparecida disse-me que foi nós os favelados quem deturpamos o seu filho.
Mas os homens da favela alguns vão trabalhar. Os outros quando não trabalham
ficam na favela. Ninguém chama o Valdemar aqui. E que êle já nasceu com o
espirito inferior. (...) Se a gente pudesse escrever sempre elogiando! Se eu
escrever que o Valdemar é bom elemento quando alguem lhe conhecer não vai
comprovar o que eu escrevi.
... Eu sentei ao redor da
fogueira. O Joaquim e sua esposa Pitita brigaram. Pobre Joaquim. Demonstrou
tolerancia para não desfazer o lar.
25 de junho Fiz o café e vesti eles para ir na escola. Puis feijão
no fogo. Vesti a Vera e saimos. O João estava brincando. Quando me viu correu.
E o José Carlos assustou-se quando ouviu a minha voz. Vi uma pirua do Governo
do Estado. Serviço de Saúde que vinha recolher as fezes. O jornal disse que há
160 casos positivos aqui na favela. Será que eles vão dar remédios? A maioria
dos favelados não há de poder comprar. Eu não fiz o exame. Fui catar papel. (...)
Ganhei só 25 cruzeiros. É que agora tem um homem que cata na minha zona. Mas eu
não brigo porisso. Porque daqui uns dias ele desiste. O homem já está dizendo
que o que ele ganha não dá nem para a pinga. Que é melhor pedir esmola.
... Passei na fábrica ( ) e catei
uns tomates. O gerente quando vê repreende. Mas quem é pobre deve fingir que
não ouve. Quando cheguei na favela fiz uma salada para os meninos.
Ouvi as crianças dizendo que
estavam brigando. Fui ver. Era a Nair e a Meiry. A Nair é branca. A Meiry é
preta. Já faz tempo que a Meiry anda prometendo que vai bater na Nair. A Meiry
é temida porque anda com gilete. E ela foi bater na Nair e apanhou. A Nair
rasgou-lhe as roupas, deixando-lhe nua.
Que gargalhada sonora! Que espetáculo
apreciadissimo para o favelado que aprecia profundamente tudo que é pornografico!
As crianças sorri e batem palmas como se estivessem aplaudindo. Depois as
crianças se dividem em grupos e ficam comentando:
– Eu vi.
– Eu não vi.
– Eu queria ver.
Atualmente as crianças não mais emocionam
quando vê uma mulher nua. Já estão habituadas. As crianças acham que nas
mulheres os corpos são iguais. A diferença é a cor. Os meus filhos vem
perguntar-me porque é que o corpo da mulher
tem isto ou aquilo. Eu finjo que não compreendo estas perguntas incomodas. Eles
dizem:
– A mamãe é boba. Ela não
compreende nada.
26 de junho ... Ouvi uns buatos que os fiscaes vieram requerer que
os favelados desocupem o terreno do Estado onde eles fizeram barracões sem
ordem. Varias pessoas que tinham barracões aqui na favela transferiram para o
terreno do Estado, porque lá quando chove não há lama. Eles disseram que vão
construir um parque infantil. O que eu acho esquisito é que o terreno tinha
alvenaria. E foi desapropriado. E agora o Zé Povinho está construindo barraco.
27 de junho Hoje a Leila está embriagada. E eu fico pensando como é
que uma mulher que tem duas filhas em idade tenra pode embriagar-se até ficar
inconciente. Dois homens vieram trazê-la nos braços. E se ela rolar na cama e
esmagar a recem-nascida?
... O que eu acho interessante é
quando alguém entra num bar ou emporio logo aparece um que oferece pinga.
Porque não oferece um quilo de arroz, feijão, doce etc.?
... Tem pessoas aqui na favela que diz que eu
quero ser muita coisa porque não bebo pinga. Eu sou sozinha. Tenho três filhos.
Se eu viciar no álcool os meus filhos não irá respeitar-me. Escrevendo isto
estou cometendo uma tolice. Eu não tenho que dar satisfações a ninguém. Para
concluir, eu não bebo porque não gosto, e acabou-se. Eu prefiro empregar o meu
dinheiro em livros do que no álcool, Se você achar que eu estou agindo
acertadamente, peço-te para dizer:
– Muito bem, Carolina!
28 de junho ... Hoje a noite vai ter uma corrida aqui na favela. A
corrida é promovida pelo Rubro Negro. Tipo corrida São Silvestre. Compraram
pinga para fazer quentão. Quentão para os adultos e batata doce para as
crianças. Fizeram uma fogueira. Puzeram4 luzes na praça. Estou aguardando a corrida
para ver quem vai vencer. Para o primeiro
colocado o premio é uma medalha, e uma garrafa de vinho e doce para o
segundo. E para o ultimo ovos podres e uma veta. O trajeto é da favela até a
igreja do Pari. O único que está alcoolisado é o Valdemar. Há decência na
favela.
... Na favela tem muitas
crianças. As crianças são sempre em maior numero. Um casal tem 8 filhos, outro
tem 6 e daí por diante.
... O senhor Alfredo fez um
baile. Está tocando vitrola. Dança só os nortistas porque os paulistas
aborreceram de ouvir e dançar pisa na
fulô. Aproveitei enquanto o povo dança paia pegar agua. Arrumei a cozinha e
fui para a fogueira.
Quando faltava 10 para as nove
iniciaram a corrida. Enquanto eu aguardava o retorno dos corredores fiquei passeando.
A Dona Ida Cardoso fez fogueira. Eu disse que no centro da cidade não fazem
fogueiras. Uma senhora respondeu-me que na cidade a fogueira é de outra forma.
Retorna os corredores. O primeiro colocado ó o Joaquim. Quando foi para premiar
o terceiro colocado, o Armim, que era o juiz, encontrou dificuldades porque
havia dois homens que dizia ter chegado em primeiro lugar. E as mulheres
entraram como juiz. E exaltaram tanto que o Armimacabou premiando os designados
pelas mulheres atrabiliarias que predominam. Se; viram quentão e vinho. Eu bebi
duas xícaras. Fiquei alegre. Dancei com o senhor Binidito. E com o Armim.
Quando eu percebi que o alcool estava desviando o meu senso eu fui deitar.
Antes de deitar dei uma surra no João, porque êle está muito malcriado.
Esqueci de citar que quando eu
estava esquentando fogo as mulheres começaram a falar que haviam visto o
retrato do Zuca no jornal. E estavam alegres. Percebi que o senhor Zuza com a
festa que fez para o povo em vez de atrair amigos atraiu inimigos. Eis o que
estava escrito no jornal do dia 26 de junho de 1958:
"Zuza, pai de santo, em cana"
"Zuza" está em cana
desde ontem, pois êle, que se chama na realidade José Onofre, e tem uma
aparência realmente imponente, mantinha para lucros extraordinários uma tenda
de Umbanda no Bom Retiro. A Tenda Pae Miguei Xangô. E também diretor de uma
industria de cadeiras suspeita de irregulardades na Delegacia de Costumes.
"Zuza" (foto), foi autuado em flagrante."
Eu disse ao Zuza que êle ia sair
no jornal. Eu ouvi um senhor dizendo que o Zuza era malandro. Mas foi as pragas
das mães que gastaram dinheiro e não ganharam nada que pegou igual o visgo.
29 de junho ... Na igreja eu ganhei dois quilos de macarrão, balas
e biscoitos. Comprei 3 sanduiches para os meninos. Quando eu retornava para a
favela encontrei com o senhor Aldo. Quando cheguei na favela estavam organizando
uma corrida só para mulheres.. Na rua "A" tem um baile. Depois que a
favela superlotou-se de nortistas tem mais intriga. Mais polemica e mais
dístrações. A favela ficou quente igual a pimenta. Fiquei na rua até nove horas
para prestar atenção nos movimentos da favela. Para ver como é que o povo age a
noite. Eu já ia retirando quando surgiu a Florenciana e o Binidito. A
Florenciana, a morta de fome. Vinha reclamando que a sua filha Vilma não havia
ganhado nada. E havia participado da corrida, precisava uma medalha. Quem
chegou em primeiro lugar foi a Iracema. A Florenciana é preta. Mas é tão
diferente dos pretos por ser muito ambiciosa. Tudo que ela faz é visando lucro.
Creio que se ela fosse dona de um matadouro havia de comer os chifres e os
cascos dos bois.
... Que descontentamento na
corrida das mulheres. Todas queriam ser classificadas. Eu fico só olhando. Não
interfiro-me porque eu não gosto de polemica. (...) A dona Rosa que aluga
barracões aqui na favela é arranca couro. Veio dizer o senhor Francisco para
arranjar-lhe quatro mil cruzeiros, que ela está com as prestações dos terrenos.
– E esse dinheiro que já dei não
pode ser incluído na venda do barraco?
– Não, Não pode. Esse dinheiro
fica para pagar o aluguel.
Foi a resposta de dona Rosa ao
senhor Francisco. Pobre senhor Francisco. Ele está doente na Caixa de
Aposentadoria e paga 700,00 por mês de aluguel e 100,00 de luz. Sustenta 4
pessoas.
Eu vou deitar. Creio que já é 1
da manhã. Quando eu ia deitar ouvi uns rumores que na rua A, os baianos estavam brigando. Fui ver. É que o Sergio havia feito
um baile. E os nortistas havia feito outro. E estavam dançando com a porta
fechada. E a mulher do Chó foi dançar no baile dos nortistas. Mas ela dançava
só com os bonitinhos. E um pernambucano convidou-lhe para dançar com êle. Ela
não quiz dançar. Olhou o pernambucano minuciosamente e não quiz dançar com êle.
O Pernambucano quando se viu preterido enfureceu-se. Arrancou a peixeira da
cinta e investiu na mulher do Chó. A unica coisa que eu vejo correr com rapidez
são os ratos e coelhos. E os relampagos. Mas a mulher do Chó quando viu a
peixeira na sua direção suplantou o relampago. O povo arrebatou-lhe a peixeira.
O pernambucano saiu correndo, fungando e bradando:
– Hoje eu mato, hoje corre sangue
na favela.
Veio correndo para a Rua B e arrancou um pau da cerca do senhor
AntonioVenancioe voltou para a Rua A.
Chegou na casa do Chó e bradava:
– Sai pra fora! Sai pra fora,
biscate vagabunda!
Deu-se uma confusão tremenda. Os
nortistas falavam e eunão entendia nada. Se no Norte êles for assim, o Norte deve
ser horroroso.
E naquela confusão a mulher do
Chó desapareceu igual fumaça.
Outra coisa que observei hoje —
noite de São Pedro. O que observei na favela e não está certo é isto: tem um soldado
vulgo Taubaté. E o predileto de algumas mulheres aqui da favela. Êle passa as noites
aqui. O soldado é turbulento.
Que bom se o tenente retirasse este
soldado da favela. Qualquer coisa para êle, é tiro. Já feriu dois da favela.
... Na rua B, na casa do extinto senhor Sebastião Gonçalves fizeram uma
fogueira. Eu fiquei sem sono porque eu não posso beber alcool. E eu bebi
quentão. Apareceu a R.P. 44. Eu segui os guardas. Como eu já expliquei, os
nortistas falavam tanto que ninguém compreendia. (...) Os guardas foram-se. E
eu saí da Rua A e fui para a Rua B. Sentei perto da fogueira. Todos
falavam. A conversa não me interessava, mas eu fiquei. Falavam nas brigas. No
jogo de foot-bol na Suissa. E na
pretenção do homem ir na lua. Uns dizia que o homem vai. Outros que não vai. E
eu quando ouvi o vai não vai, já fiquei pensando numa briga, porque aqui na
favela tudo inicia bem e termina com brigas.
Fiquei esperando a Purtuguesa de
Desportos soltar os foguetes, porque se eu deitasse antes tinha que despertar
com os foguetes. Uma senhora que esquentava fogo disse-me que a Angelina Preta
bateu no seu filho Argemiro de oito anos e não quer que êle passe na Rua A para pegar agua.
30 de junho Fiz café e fui buscar agua. Ouvi um grito, fui ver o
que era. Era a Odete brigando com o seu companheiro. Ela dizia:
– Dona Carolina, vai chamar a
Policia!
Eu lhe aconselhava para ficar
quieta:
– Odete, você está gravida!
Eles estavam atracados. Eu já
estou na favela há 11 anos e tenho nojo de presenciar estas cenas. A Odete
estava semi-nua com os seios a mostra.
Eles brigam sem saber porque é
que estão brigando. As visinhas contou-me que a Odete jogou agua fervendo no
rosto do seu companheiro.
... Hoje vários homens não foram
trabalhar. Coisas de segundas-feiras. Parece que eles já estão cançados de trabalhar.
1 de julho ... Eu percebo que se este Diário for publicado vai maguar
muita gente. Tem pessoas que quando me vê passar saem da janela ou fecham as
portas. Estes gestos não me ofendem. Eu até gosto porque não preciso parar para
conversar. (...) Quando passei perto da fabrica vi varios tomates. Ia pegar
quando vi o gerente. Não aproximei porqueêle não gosta que pega. Quando
descarregam os caminhões os tomates caem no solo e quando os caminhões saem
esmaga-os. Mas a humanidade é assim. Prefere vê estragar do que deixar seus
semelhantes aproveitar. Quando ele afastou-se eu fui pegar uns tomates. Depois
fui catar mais papeis. Encontrei o Sansão. O carteiro. Ele ainda não cortou os
cabelos. Ele estava com os olhos vermelhos. Pensei: será que êle chorou? Ou está
com vontade de fumar ou está com fome! Coisas tão comum aqui no Brasil. Fitei o
seu uniforme descorado. O senhor Kubstchek que aprecia pompas devia dar outros
uniformes para os carteiros. Ele olha-me com o meu saco de papel. Percebi que
êle confia em mim. As pessoas sem apoio igual ao carteiro quando encontra
alguem que condoi-sedêles, reanimam o espirito.
Eu não gosto do Kubstchek. O
homem que tem um nome esquisito que o povo sabe falar mas não sabe escrever.
... O baiano esposo de dona Zefa
é meu vizinho e veio queixar-se que o José Carlos lhe aborrece. O que eu sei é
que com tantos baianos na favela os favelados veteranos estão mudando-se. Eles
querem ser superior pela força. Para ficar livre deles os favelados fazem um
sacrifício e compram um terreno e zarpam-se. Eu disse-lhe:
– Teus filhos também aborrece-me.
Abre as minhas gavetas e o que eles encontram carregam.
– Eu não sabia disso.
E nem ia saber porque eu não faço
reclamações de crianças. Porque eu gosto das crianças.
... Aqui reside uma nortista que
é costureira. Eu gostava muito dela. Lhe favorecia no que eu podia. Um dia o meu
filho José Carlos estava brincando perto da casa dela e ela jogou-lhe agua. No
outro dia veio um caminhão jogar abacaxi
podre aqui na favela e eu perguntei a ela porque havia jogado agua no meu
filho.
– Eu joguei fria. Mas se êle me
aborrecer outra vez eu quero jogar é agua quente com sóda para êle não
enchergar mais e não aborrecer mais ninguém.
A minha simpatia pela dona
Chiquinha arrefeceu. (...) No outro dia a dona Chiquinha veio perguntar se
euqueria brigar com ela que ela ia buscar a peixeira. Não lhe dei confiança.
3 de julho Eu estava escrevendo quando ouvi o meu visinho Antonio
Nascimento repreendendo o meu filho José Carlos. Ele anda dizendo que vai bater
no menino. Se fosse uma reprensão justa, mas a dele é impricancia. Onde é que
já se viu um homem de 48 anos desafiar uma criança de 9 anos para brigar? Mas o
Antonio Nascimento nasceu com as ideias ao avesso.
... A filha da Dirce morreu. Era
duas gemeas. Atualmente ela tem tido partos duplos. O ano passado morreu o
casal de gemeos. O menino num dia, e a menina no outro. E agora fenece outra.
Quando morre alguém aqui na
favela os malandros saem pelas ruas pidindo esmolas para sepultar os que
falece. Embolsam o dinheiro e gastam na bebida.
Os favelados estão comentando o
retorno dos jogadores.
4 de julho ...Quando eu passava na rua Eduardo Chaves, uma senhora
chamou-me e deu-me umas panelas de aluminio, papeis e um quilo de carne assada
com batatas. Creio que ela deu-me a carne por causa da Vera, que disse-lhe que
gostaria de levar o seu berço para o Mercado e morar lá. Porque lá tem muitas
coisas boa para comer. Que ela gosta de carne e quer casar com açougueiro. Já
percebi que minha filha é revoltada. Ela tem pavor de morar na favela.
... Um dia apareceu aqui na
favela uma preta que disse chamar Vitoria. Veio com um menino por nome Cezar. A
preta disse-me que era empregada de Dona Mara, que dança na Boite Oasis na Rua
7 de Abril. Para eu emprestar-lhe um caderno de poesia e ir procurá-la na
Avenida São João. A preta disse-me que estava estudando musica no ConservatorioDramatico
Musical. Quem indicou o meu barraco para a preta foi a Florenciana. Ela deu-me
êste endereço: Avenida São João, 190, 82 andar apartamento 23. O que deixou-me
preocupada foi o predio ter 82 andar. Ainda não li que São Paulo tem prédio tão
elevado assim. Depois pensei: eu não saio do quarto de despejo, o que posso
saber o que se passa na sala de visita? Com a insistencia da Florenciana, eu
emprestei.
Quando fui na cidade procurar o
numero 190 não encontrei. Fui naBoite Oasis procurar a Dona Mara para saber como
é que eu poderia localisar sua empregada ordinaria. Irformaram-me que a Dona
Mara frequenta a boite e que chegava a 1 da manhã. Deixei uma carta para a Dona
Mara e não obtive resposta. Mas o dia que eu encontrar esta tal Vitoria ela vai
apanhar.
... Ensaboei as roupas. Depois
fui acabar de lavar na lagoa. O Serviço de Saúde do Estado disse que a agua da lagoa
transmite as doenças caramujo.Vieram nos revelar o que ignoravamos. Mas não
soluciona a deficiência da agua.
... A Dona Alice está triste
porque ela alugou o barracão da Dona Rosa. E ela quer vender o barracão. Quer
4.000.00. E o seu esposo não tem o dinheiro. E a Dona Rosa não lhe cumprimenta.
(...) Eu nunca vi uma pessoa tão ambiciosa assim. Ainda se fosse só a ambição,
mas a inveja é a sua sombra. Quando eu ganhei a minha saia vermelha ela ficou
furiosa. Dizia:
– Só eu é que não ganho nada!
Agora ela faz outro barracão e
alugou o outro que ela residia. É o que está residindo o senhor Francisco.
Quando os meus filhos eram
menores eu deixava êles fechado e saía para catar papel. Um dia eu cheguei e
encontrei o João chorando. Ele disse-me:
– Sabe mamãe, a Dona Rosa me
jogou bosta no rosto.
Eu acendi o fogo, esquentei agua
e lavei as crianças, fiquei horrorisada com a maldade da Dona Rosa. (...) Ela
sabe que aqui na favela não pode alugar barracão. Mas ela aluga. E a pior
senhoria que eu já vi na vida. Porque será que o pobre não tem dó do outro
pobre?
5 de julho ... O Frei Luiz
hoje nos visitou com o seu carro capela. Nos disse que vai ensinar o catecismo
as crianças para fazer a primeira comunhão. E aos sábados vem nos ensinar a
conhecer os trechos biblicos.
6 de julho Despertei as 4 horas e meia com a tosse da Neide.
Percebi que aquela tosse não ia deixar-me dormir. Levantei e dei-lhe um pouco
de xarope porque fiquei com dó. Ela é orfã de pai. Quando o pai estava doente a
mãe deixou-as. São treis filhas. (...) A mãe da Neide é uma desalmada. Não
prestou para tratar do esposo enfermo e nem para criar as filhas que ficaram
aos cuidados dos avós.
... Esquentei o arroz e os peixes
e dei para os filhos. Depois fui catar lenha. Parece que eu vim ao mundo predestinada
a catar. Só não cato a felicidade.
... Estendi as roupas para
quarar. Ao meu lado estava a mulher do nortista que dormia com a mulher do Chó.
Estava nervosa e falata tanto. Parece que tem a lingua eletrica. Parecia o Carlos
Lacerda quando falava do Getulio. Dizia que era ela quem lavava as roupas da
mulher do Chó. E o seu esposo é quem lhe dava dinheiro para ela lhe pagar.
... É 5 e meia. O frei Luiz está
chegando para passar o cinema aqui na favela. Já puzeram a tela e os favelados
estão presentes.
As pessoas de alvenaria que
residem perto da favela diz que não sabe como é que as pessoas de cultura dá
atenção ao povo da favela.
As crianças da favela bradaram
quando iniciaram o cinema, representando trechos da Biblia. O nascimento de
Cristo. Chegou o carro capela com o Frei Luiz. Um vigário que é util aos favelados. (...) Quando passava uma tela o Frei
explicava. Quando passou os Reis Magos o Frei explicou que a denominação Magos
é porque êles liam a sorte das pessoas nas estrelas. E se alguem sabia o nome
dos Reis Magos. Que um é muito conhecido e chamava Baltazar.
– E o outro Pelé — respondeu um
moleque.
Todos riram. Chegou o caminhão
com os jogadores na hora que o padre estava rezando. Resolvi tomar parte no coro.
Os meus filhos chegaram do cinema e eu fui dar o jantar para eles. A Vera estava
contente e contava as travessuras de José Carlos. O João perdeu os 11 cruzeiros
que eu dei-lhe para ir no Rialto. Ele levava o dinheiro na carteira e foi com os
meninos da favela. E alguns deles ja sabem bater carteira.
7 de julho ... Fui na dona Juana, ela deu-me pães. Passei na
fabrica para ver se tinha tomates. Havia muitas lenhas. Eu ia pegar uns pedaços
quando ouvi um preto dizer para eu não mecher nas lenhas que êle ia bater-me.
Eu disse para bater que eu não tenho medo. Ele estava pondo as lenhas dentro do
caminhão. Olhou-me com desprezo e disse:
– Maloqueira!
– Por eu ser de maloca ó que você
não deve mecher comigo. Eu estou habituada a tudo. A roubar, brigar e beber. Eu
passo 15 dias em casa e quinze dias na prisão. Já fui senterciada em Santos.
Ele fez menção de agredir-me e eu
disse-lhe:
– Eu sou da favela do Canindé.
Sei cortar de gilete e navalha e estou aprendendo a manejar a peixeira. Um
nortista está me dando aulas. Se vai me bater pode vir.
Comecei apalpar os bolsos.
– Onde será que está minha
navalha? Hoje o senhor fica só com uma orelha. Quando eu bebo umas pingas fico
meio louca. Na favela é assim, tudo que aparece por lá nós batemos e roubamos o
dinheiro e tudo que tiver no bolso.
O preto ficou quieto. Eu vim
embora. Quando alguem nos insulta é só falar que é da favela e pronto. Nos
deixa em paz. Percebi que nós da favela somos temido. Eu desafiei o preto porque
eu sabia que ele não ia vir. Eu não gosto de briga.
Quando eu voltava encontrei com o
Nelson da Vila Guilherme. Disse algo que eu não gostei. Fingi que não compreendia
o que ele dizia.
– Mas você é tão inteligente e
não compreende porque é que eu ando atrás de você?
Quando eu cheguei na favela os
meus filhos não estavam. Gritei. Não apareceu ninguém. Fui no senhor Eduardo e comprei
meio litro de óleo e 16,00 de linguiça. Encontrei o dinheiro que o João recebeu
quando vendeu os ferros. 46 com 20,66. Quando eu voltava fiquei olhando os
homens da favela. A maioria não trabalha as segundas-feiras. (...)Fui no senhor
Manuel vender os ferros que eu achei pelas ruas e ver se via os meus filhos.
Quando eu ia chegando no senhor Manoel vi o João que retornava. Disse-me que
catou umas latas e ganhou 4,00. Perguntei-lhe pela Vera. Disse-me que deixou em
casa. E que ela estava com o José Carlos.
Quando eu retornava ouvi a voz da
Vera. Ela dizia:
– José Carlos, olha a mamãe!
Veio correndo na minha direção.
Disse que ela e José Carlos tinham ido pedir esmolas. Ele estava com o saco nas
costas. Eu vinha na frente e dizia que êle devia era fazer lições. Eu precisava
ir na cidade.
Enquanto eu vestia ouvia a voz do
Durvalino que discutia com um bebado desconhecido por aqui. Começou surgir as
mulheres. Elas não perdem estas funções. Passam horas e horas contemplando. Não
lembram de nada, se deixou panela no fogo. A briga para elas é tão importante
como as touradas de Madri para os espanhois. Vi o Durvalino agredindo o bebado
e tentando enforca-lo. O bebado não tinha forças para reagir. O Armime outros
retirou as mãos do Durvalino do pescoço do bebado e levaram êle para o outro lado
do rio. E o Durvalino ficou
comentando o seu feito.
... Fui trocar o meu titulo de
eleitor. Quando cheguei na rua Seminario fui tirar fotografia no Foto Lara.
60,00. Enquanto eu esperava as fotografias eu conversava com as pessoas
presentes. Todas agradaveis. Recebi as fotografias e fui para a fila. Conversei
com uma senhora que o seu esposo é funcionario da Prefeitura. E quiz saber em
quem eu ia votar. Disse-lhe que vou votar no Dr. Adhemar. (...) Deixei o tribunal
e tomei o bonde. Quando desci no ponto final fui no açougue comprar carne
moida. Passei na COAP e comprei meio quilo de arroz. Perguntei a jornaleira se
ela tem titulo de eleitor. Eu pensava nos filhos que devia estar com fome.
(...) A Vera começou pedir comida. Esquentei e dei-lhe. O João jantou e o José
Carlos também. Contou-me que o cunhado da Dona Aparecida havia chegado na assistencia.
Que foi atropelado. Que estava engessado.
Quando eu vou na cidade tenho a
impressão que estou no paraizo. Acho sublime ver aquelas mulheres e crianças
tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e
cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os olhos dos visitantes de São
Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da America do Sul está enferma.
Com as suas ulceras. As favelas.
8 de julho Eu estava indisposta, deitei cedo. Despertei com a
algazarra que fazia na rua. Não dava para compreender o que diziam porque todos
falavam ao mesmo tempo e era muitas vozes reunidas. Vozes de todos os tipos. Eu
queria levantar para pedir-lhe que deixasse o povo durmir. Mas percebi que ia
perder tempo. Eles já estavam alcoolizados. A Leila deu o seu shou. E os seus
gritos não deixou os visinhos dormir. As quatro horas comecei escrever. Quando
eu desperto custo adormecer. Fico pensando na vida atribulada e pensando nas
palavras do Frei Luiz que nos diz para sermos humildes. Penso: se o Frei Luiz
fosse casado e tivesse filhos e ganhasse salario minimo, ai eu queria ver se o
Frei Luiz era humilde. Diz que Deus dá valor só aos que sofrem com resignação.
Se o Frei visse os seus filhos comendo generos deteriorados, comidos pelos côrvos
e ratos, havia de revoltar-se, porque a revolta surge das agruras.
... Mandei o João comprar 10,00
de queijo. Ele encontrou-se com o Adalberto e disse-lhe para ele vir falar
comigo. É que eu ganhei umas tábuas e vou fazer um quartinho para eu e escrever
e guardar os meus livros. Eu sai e fui catar papel. Pouco papel nas ruas,
porque outro coitado também está catando papel. Êle vende o papel e compra
pinga e bebe. Depois senta e chora em silencio. Eu estava com tanto sono que
não podia andar. A Dona Anita deu me doces e ganhei só 23,00. Quando cheguei na
favela o João estava lendo gibi. Esquentei a comida e dei-lhes. O barulho
noturno que ouvi: as mulheres estavam comentando que os homens beberam 14
litros de pinga. E a Leila insultou um jovem e êle espancou-a. Lhe jogou no
solo e deu um ponta-pé no rosto. O ato é selvagem. Mas a Leila quando bebe
irrita as pessoas. Ela já apanhou até do Chiclé um preto bom que reside aqui na
favela. Ele não queria espancá-la. Mas ela desclassificou-lhe demais. Ele
deu-lhe tanto que até arrancou-lhe dois dentes. E por isso o apelido dele aqui
na favela é Dentista. A Leila ficou
com o rosto tão inchado que foi preciso tomar pinicilina. (...) Hoje é dia das
choronas. Aqui reside uma nortista que quando bebe torra a paciencia. O filho
da nortista arranjou uma namorada. Uma mulher que pode ser a sua avó. A futura
esposa veio residir com a sua mãe. Quando a velha bebe fica aborrecendo e
discutem. E a velha não lhes dava socego. Ele fugiu com a mulher. E a velha
está chorando. Quer o retorno do filho.
... É cinco horas. José Carlos
chegou. Vou troca-lo para ir na Casa Gouveia comprar um par de sapatos para
êle. Na Casa Gouveia ele escolheu o sapato. 159,00. O senhor Gouveia deixou por
150.00. Ele está contente. E olha as pessoas que passam para ver se estão
notando seus sapatos novos.
Quando eu cheguei na favela
encontrei com o senhor Francisco. Ele emprestou-me a carrocinha e eu fui buscar
as tabuas. Levei a Vera dentro da carrocinha. O José Carlos e o Ninho. Para ir
foi fácil. A carrocinha deslisava no asfalto como se fosse automatica. Coloquei
as madeiras de varios modos. Ora ficava dianteira ora trazeira. Percebi que precisava
trazer em duas vezes. O que é preciso fazer eu faço sem achar que é sacrifício.
Na rua Araguaia com a rua Canindé tem muita lama e eu encontrei dificuldade
porque eu estava descalça e os meus pés deslizava na lama. Não havia
possibilidade de firmar os pés. Eu escorregava. Apareceu um senhor e empurrou a
carrocinha para mim. Disse-me para eu ageitar as tabuas. Agradeci e segui. No
ponto do bonde as tabuas escorregaram da carrocinha. E o José Carlos vendo a
minha luta disse-me:
– Porque é que a senhora não
casou-se? Agora a senhora tinha um homem para ajudar.
... Dei graças a Deus quando
cheguei na favela. Uma senhora estava esperando-me. Disse-me que o João havia
machucado a sua filha. Ela disse-me que o meu filho tentou violentar a sua
filha de 2 anos e que ela ia dar parte no Juiz. Se êle fez isto quem há de
interná-lo sou eu. Chorei.
... Deitei o José Carlos e saí
com o João. Fui no Juizado para saber se havia possibilidade de interná-lo.
Preciso retira-lo da rua porque agora tudo que aparecer de mal vão dizer que
foi ele. (...) No Juizado o Dr. que estava de plantão disse para eu voltar dia
10 que o dia 9 era feriado. Saí do Juizado e fui tomar o bonde por ser mais
barato. No ponto do bonde o João plantou-se na porta da pastelaria e eu sentei
para descançar um pouco. Quando cheguei na favela era meia noite. Eu estava
nervosa.
9 de julho Tive sonhos agitados. Eu estava tão nervosa que se eu
tivesse azas eu voaria para o deserto ou para o sertão. Tem hora que eu revolto
comigo por ter iludido com os homens e arranjando êstes filhos.
Quando eu estava preparando-me
para sair a Dona Alice veio dizer que dois meninos do Juiz esteva vagando aqui
na favela. Fui ver. Estavam com roupas amarelas. Descalços e sem camisa. Só com
aquele blusão em cima da pele. Eles estavam desorientados. Perguntei se queriam
café. Responderam que não.
Eu entrei e fui preparar para
sair para a rua. O José Carlos acompanhou os meninos. Depois veio perguntar-me
se eu podia arranjar umas roupas para os meninos.
– Vá chamá-los!
– Ele foi e voltou com os
meninos. Um era; mulato claro. Um rosto feio. Um narigão. O outro era branco
bonito. Contaram-me os horrores do Juizado. Que passam fome, frio e que apanham
initerruptamente. Perguntaram se eu podia arranjar-lhes umas camisas. Dei-lhes
as camisas e as calças. Perguntei-lhes os nomes. O mulato é Antonio e o branco
é Nelson. Perguntei-lhes se sabiam ler. Responderam que sim. Dei-lhes café.
Falaram que residem na Vila Maria e que tem mãe. Aconselharam meus filhos para
ser bons para mim. Que os filhos estão melhor com as mães. Que a coisa melhor
do mundo é a mãe. Eles pegaram as roupas que eu dei-lhes. A calça do Nelson
tinha tantos remendos que podia pesar 3 quilos. Quando eles sairam olharam o
numero do meu barracão e pediu-me para não internar o João que a comida é
deficiente. Que eles era obrigado a lavar louça. Que se uma criança jogar fora
o resto da comida do lixo, que eles obriga a criança catar e comer.
Os meus filhos ficaram
horrorisados com a narração dos fugitivos. Decidi não internar o João porque ele
tem apetite. O que eu observei é que eles queriam livrar-se das roupas
amarelas.
Os meninos perguntaram o meu nome
e saíram sorrindo para mim. Penso: porque será que os meninos que fogem do
Juizado vem difamando a organisação? Percebi que no Juizado as crianças degrada
a moral. Os Juizes não tem capacidade para formar o carater das crianças. O que
é que lhes faltas? Interesse pelos infelizes ou verba do Estado?
Em 1952 eu procurava ingressar na
Vera Cruz e fui no Juizado falar com o Dr. Nascimento se havia possibilidade de
internar os meus filhos. Ele disse-me que se os meus filhos fossem para o
Abrigo que ia sair ladrões.
Fiquei horrorisada ouvindo um
Juiz dizer isto.
Quando existia a saudosa Rua
Itaboca, eu digo saudosa porque vejo tantos homens lamentando a extinção da
zona do meritricio. Quando eu ia lá e via as mulheres mais nogentas eu
perguntava:
– Onde vocês foram criadas?
– No Abrigo de Menores.
– Vocês sabem ler?
– Não! Porque? Você é padre?
Eu parava a interrogação. Elas
não sabiam 1er, nem cuidar de uma casa. A única coisa que elas conhecem minuciosamente
e pode lecionar e dar diplomas é pornografia.
Pobres orfãs do Juiz!
Fui catar papel. Estava
indisposta. O povo da rua percebe quando eu estou triste. Ganhei 36,00. Voltei.
Não conversei com ninguem. Estou sem ação com a vida. Começo achar a minha vida
insipida e longa demais. Hoje o sol não saiu. O dia está triste igual a minha
alma. Deixei o João fechado estudando. Disse-lhe que o homem que erra está
vacinado na opinião publica. O que eu observo é que os que vivem aqui na favela
não podem esperar boa coisa deste ambiente. São os adultos que contribue para
delinquir os menores. Temos os professores de escândalos: A Leila, a Meiry, a
Zefa, a Pitita e a Deolinda.
... Quando eu chegueina favela
encontrei com um nortista que estava com uma peixeira procurando o meu filho.
Quando me viu não disse nada. Mas eu conversei com êle.
Ouvi as mulheres do deposito
dizer que o senhor João da rua do Porto faleceu e que ficou dois dias aguardando
recursos para ser sepultado. Eu ia vê-lo. Mas comecei sentir indisposição e
resolvi deitar um pouco. Já faz uns dois anos que eu não deito durante o dia.
Penso no senhor João que já há
tempos estava doente. Paralisia. Ele dizia que queria morrer porque não
apreciava ser sustentado pela esposa. Que a vida sem doença já é dura de
conduzir. A sua esposa dona Angelina é quem trabalhava para os dois. Ela tinha
um auxilio das vicentinas, mas fizeram tanta intriga e as vicentinas deixou de
auxiliá-la. Injustiça.
Eu dormi um pouco. Depois comecei
a escrever. A dona Alice deu-me um prato de sopa. O dia que eu mudar da favela
vou acender uma vela para São Sebastião. Ouço a Deolinda brigando com seu
esposo.
Eles eram amasiados e as
vicentinas aconselhou-os a casar. Ele bebe muito e ela o dobro. Ela disse que o
seu estomago não aceita café de manhã. Que se beber vomita.De manhã, ela bebe
pinga e passa o resto do dia chupando o dedo. É nojento ver uma mulher de 50
anos chupando o dedo. Ela foi chamar a Radio Patrulha porque ambos estão com a
cabeça quebrada. A sogra tambem bebe. E forma o trio mais escandaloso da rua C.
Eu guardei as roupas dos meninos
do Juizado, para comprovante. Fiquei horrorisada com o cheiro de suor. E achei
desmazelo.
10 de julho Deixei o leite as 5 e meia para pegar agua. Não gosto
de estar entre as mulheres porque é na torneira que elas falam de todos e de
tudo. Estou tão indisposta que se eu pudesse deitar um pouco! Mas eu não tenho
nada para os meninos comer. O unicogeito é sair. Deixei o João estudando.
Ganhei só 10,00 e achei metais. Achei um arco de pua e um estudante pediu-me.
Dei-lhe. Ele deu-me 3cruzeiros para um café. (...) Passei na feira. Comprei batata
doce e peixe. Quando cheguei na favela era 12 horas. Esquentei a comida para o
João e fui ajeitando o barracão. Depois fui vender umas latas e ganhei 40
cruzeiros. Retornei a favela e fiz o jantar.
A Deolinda e o seu esposo que
foram naRadio Patrulha ainda não voltaram. Será que ficaram presos.
Cai a tarde lentamente. Já estão
chegando os crentes, com seus instrumentos musicaes para louvar Deus. Aqui na
favela tem um barracão na rua Bonde
os crentes vem rezar treis vezes por semana. Uma parte do barracão é coberto
com folha de flandres e a outra de telha. Tem dia que eles estão rezando e os
vagabundos da favela jogam pedras no barracão e quebram as telhas. As que cai
em cima das folhas faz barulho. Mesmo sendo insultados eles não desanimam.
Aconselha os favelados para não roubar, não beber e amar ao próximo como a si
mesmo. Os crentes não permite a entrada das mulheres que usa calças e nem
vestidos decotados. Os favelados zombam dos conselhos.
Fui buscar uma lata de agua e uma
senhora estava lamentando:
– Se eu fosse jovem eu não
residia nesta favela nem um dia. Mas eu já sou velha. E velho não se governa.
Aqui nesta favela a gente vê
coisa de arrepiar os cabelos. A favela é uma cidade esquisita e o prefeito
daqui é o Diabo. E os pinguços que durante o dia estão oculto a noite aparecem
para atentar.
Percebo que todas as pessoas que
residem na favela, não aprecia o lugar.
Parte III
11 de julho Deixei o leito as 5 e meia. Já estava cansada de
escrever e com sono. Mas aqui na favela não se pode dormir, porque os barracões
são umidos, e a Neide tosse muito, e desperta-me. Fui buscar agua e a fila já
estava enorme. Que coisa horrivel é ficar na torneira. Sai briga ou alguém quer
saber a vida dos outros. Ao redor da torneira amanhece cheio de bosta. E quem
limpa sou eu. Porque as outras não interessam.
... Quando cheguei na favela
estava indisposta e com dor nas pernas. A minha enfermidade é física e moral.
12 de julho ... Fui no Frigorifico, ganhei uns ossos. Estou
indisposta. Comprei dois pães doce para o João e a Vera. Catei uns tomates. Encontrei
um preto iducado e elegante no
falar. Disse-me que reside em Jaçanã. Eu ia perguntar-lhe o nome mas fiquei com
vergonha. Ele deu dois cruzeiros ao João e eu comprei querozene. Cheguei em
casa, fui no senhor Manoel vender os ferros. O deposito já estava fechado. Cheguei
em casa e deitei. Estava com frio e mal estar. O povo da favela já sabe que eu
estou doente. Mas não aparece ninguém para prestar-me um favor. Não deixo o
João sair. Ele passa o dia lendo. Ele conversa comigo e eu vou revelando as
coisas inconvinientes que exite no mundo. Já que o meu filho já sabe como é o
mundo, a linguagem infantil entre nós acabou-se.
O José Carlos foi na feira. Eu
servi os ossos para fazer uma sopa. A Vera não quiz. O Frei Luiz está pondo a tela,
para passar o cineminha. Não vou comparecer porque estou doente. O João
pediu-me para irmos. Disse-lhe que enquanto nós residirmos aqui na favela ele
não há de brincar com mais ninguém. Antes eu falava e ele revoltava. Agora eu
falo e êle ouve. Eu pretendia conversar com o meu filho as coisas serias da
vida só quando ele atingisse a maioridade.
Mas quem reside na favela não tem
quadra de vida. Não tem infancia, juventude e maturidade.
O meu filho, com 11 anos já quer
mulher, que ele precisa tirar o diploma de grupo. E estudar depois, que o curso
primário é muito pouco.
13 de julho ... Estão chegando as enfermeiras do Frei Luiz, que vem
curar as chagas dos favelados. Elas estão ensinando as crianças rezar. (...) Eu
queria saber como é que o Frei Luiz descobriu que os favelados tem chagas.
Esquentei o jantar para as
crianças. Ouço a Meiry convidando a Nair para ir no baile da Rua A. A Vera está
tussindo. Levanto-me para dar-lhe um comprimido. Estou com febre. Não posso
levantar. Estou esperando o José Carloschegar. Quando ele chegou deu-me a caixa
onde eu guardo os remedios e tomei uma Salofeno e a dor foi desaparecendoe eu
adormeci. Despertei as 2 da madrugada com o Arnaldo e a Leila brigando.
14 de julho Passei o dia deitada por estar com febre e dor nas
pernas. Não tinha dinheiro, mas eu havia deixado uns ferros lá no senhor Manoel
e mandei o José Carlos ir pesar e receber. Ganhou 22 cruzeiros. Comprei 5 de
pão e 5 de açucar e comprimido. Levantei só para preparar as refeições. Passei
o dia deitada. O José Carlos ouviu a Florenciana dizer que eu pareço louca. Que
escrevo e não ganho nada.
15 de julho Hoje é o aniversario de minha filha Vera Eunice. Eu não
posso fazer uma festinha porque isto é o mesmo que querer agarrar o sol com as
mãos. Hoje não vai ter almoço. Só jantar.
... Estou mais disposta. Ontem
supliquei ao Padre Donizeti para eu sarar. Graças a Deus que atualmente os
santos estão protegendo. Porque não sobra dinheiro para eu ir no medico.
... Fui catar papel, levei os
filhos. Eu agora quero ter o João debaixo dos meus olhos. Fui na Dona Julita.
Ela está em Santo André. Cheguei em casa fiz o almoço. Fui no Senhor Manoel
vender os ferros. Ganhei 25 cruzeiros. Comprei pão. Quado cheguei na favela
tinha um purtuguês vendendo miudo de vaca. Comprei meio quilo de bucho. Mas eu
não gosto de negociar com purtuguês. Eles não tem iducação. São obcenos,
pornograficos e estupidos. Quando procura uma preta é pensando explorá-la. Eles
pensam que são mais inteligentes do que os outros. O purtuguês disse para a
Fernanda que lhe dava um pedaço de figado se ela lhe aceitasse. Ela não quiz.
Tem preta que não gosta de branco. Ela saiu sem comprar. Ele deixou de vender
por ser atrevido.
16 de julho ... Não havia papel nas ruas. Passei noFrigorifico.
Havia jogado muitas linguiças no lixo. Separei asque não estava estragadas..
(...) Eu não quero enfraquecer e não posso comprar. E tenho um apetite de Leão.
Então recorro ao lixo.
17 de julho A Leila e o Arnaldo brigaram toda a noite. Não nos
deixou dormir. Deixei o leito as 5 e meia e carreguei agua. Na torneira sempre
sai encrenca:
– Você passou na minha frente!
– Não passei!
E daí prossegue. Um dia o esposo
da Dona Silvia estava na torneira e discutiram, ele e um nortista, o senhor Manoel
pai do Zé Maria. Enquanto eles trocavam insultos ou presenciava. O nortista
tirou a peixeira. O Antonio de Andrade tem 65 anos. Mas quando viu a peixeira
reluzir saltou igual ao Ademar Ferreira no salto triple.
... Saí e fui catar papel. Ganhei
60 cruzeiros. Parei para conversar com a Dona Anita. Ela está preocupada com as
noticia de guerra. Que a guerra é ingrata para os jovens. Que é pungente a
condição dos pracinhas. Que heroi são os jogadores de fut-bol. Os pracinhas são venerados pelas mulheres. E que os
pracinhas são nossos filhos.
Eu ouvi dizer que o General
Teixeira Lot não vai enviar tropas para o Oriente Medio. Se for assim creio que
devemos considerar e venerar o nosso general que já demonstrou o seu desvelo
pelo povo e o paíz.
18 de julho ... Saí e fui catar papel. Ouvia as mulheres lamentando
com lagrimas nos olhos que não mais aguenta o custo de vida. (...) Levei o João
para evita encrenca. Passei na banca de jornal na Avenida Tiradentes parei para
conversar com uns senhores e com o jornaleiro.
Cheguei na favela era 12 e meia.
O Durrvalino passou com um pedaço de carne na mão Parou para brincar com a Neide
e começou falar do Bobo. Que êlenão presta e vai ser um pessimo esposo. Deu um
pedaço de carne para a Dona Aparecida.
19 de julho ... Fui na bolacha. O dono disse que nãodava mais
bolacha. Voltei catando tudo que encontrava. Está chovendo e eu não quiz catar
papel. Quando cheguei na favela a Vera contou-me que a baiana havia lhe
chingado. Uma mulher de 32 anos brigar com uma criança de 5 anos! Uma visinha
que viu a baiana chingando a Vera confirmou. Assim que a nojenta viu-me começou
insultar-me. Mostrou uma peixeira para o José Carlos e disse que pretende lhe
picar.
Fui no senhor Manoel vender uns
ferros. Ganhei 55 cruzeiros. Levei pouco material e achei que era muito dinheiro.
Perguntei ao senhor Manoel se não errou no troco.
... Fui na feira, comprei 1 quilo
de feijão e 1 rim. O resto eu catei. Quando um purtuguês jogou uns pés de
alface no chão e eu peguei, o purtuguês gritou:
– Chegou a freguesia do Bastião!
... Hoje eu não lavo as roupas
porque não tenho dinheiro para comprar sabão. Vou ler e escrever.
A Leila pegou machado e repicou o
fundo da bacia. A bacia é da Ivone Horacio, que deu-me as 5 canivetadas em
1952.
O processo foi cancelado porque
ela não compareceu no foro. A Ivone pediu a bacia, a Leila não queria devolver.
Picou o fundo. Eu fiquei horrorisada e com dó.
... Dois nortistas brigaram. Só
procuram insultos. O Vitor Franquistém, o valentão, apanhou do Valdemar Espadela.
Todos gostaram porque o Vitor quer ser o Lampeão da Favela. Foram 2 cacetadas.
Agora as mulheres estão dizendo que vão cotisar e comprar uma camisa de lã para
dar de presente ao Valdemar para comemorar o seu grande feito.
20 de julho ... Eu estava escrevendo quando ouvi a voz do senhor
Binidito. Mandei êle entrar. Ele conduziu um senhor do Centro Espirita Divino
Mestre, localisado na Rua Oriente, que veio dar cartão para a gente buscar
agasalhopara as crianças, dia 23. Fiquei tão contente que saí da cama com
rapidez. E expliquei ao senhor o que é que eu escrevo.
... Ia recomeçar escrever quando
o Adalberto chegou. Veio fazer uma cerca para mim. Para evitar a entrada dos nortistas
que por qualquer motivo vem aborrecer. Quem trabalhou na cerca foi o Adalberto,
o Luiz, hospede recente da favela e o José da Dona Rosa. Compraram pinga e eu
fiz caipirinha. E fiz almoço para eles. Era 1 hora quando eu ia recomeçar
escrever. O Senhor Alexandre começou a bater na sua esposa. A Dona Rosa
interviu. Ele dava ponta-pé nos filhos. Quando ele ia enforcar a Dona Nena, a
Dona Rosa pediu socorro. Então o soldado Edison Fernandes foi pedir ao senhor
Alexandre para não bater na sua esposa. Ele não obedeceu e ameaçou o soldado
com uma peixeira. O Edison Fernandes deu-lhe uns tapas. O Alexandre avoou que
nem balão impelido pelo vento.
O soldado Edison mandou-me
telefonar para a Radio Patrulha. Eu fui avuando. Telefonei e voltei correndo.
Quando cheguei na favela a briga estava quente. O Alexandre chingava as
crianças que iam olhar e avançou para o meu filho João. E desacatava o soldado
Edison, querendo bater-lhe no rosto e dizendo-lhe:
– Leva a minha mulher para você!
Mulher depois que casa é para suportar o marido e eu não adimito soldado dentro
da minha casa. Você está interessado na minha mulher?
Assim que os favelados me viram,
gritaram:
– Cadê a Policia?
– Já telefonei.
Em 5 minutos a Radio Patrulha
apareceu. Eu e a Vera entramos no carro. A Vera começou sorrir achando
delicioso andar de carro. Quando o povo da alvenaria me viram na Radio Patrulha
gritaram:
– Crime na favela!
E corriam na direção da favela.
Vi entre as pessoas o meu compadre José Nogueira.
... O José Carlos regresssou do
cinema e eu contei-lhe o shov do seu
Alexandre. Ele. disse-me que o Alexandre estava no ponto do bonde. Não
acreditei. Será possível que a Policia ia soltar um homem tão turbulento que
não respeita as crianças?
Como eu já estava previnida, não
assustei quando ouvi a voz do Alexandre discutindo com a mãe do soldado Edison.
Eu intervi porque ela está gestante. Eu saí para procurar o Bobo para ele
retirar o Alexandre de dentro da casa. Mas o Binidito já havia empurrado o
Alexandre para fora. Ele entrou no seu barraco e fechou a porta. Estava tão
bêbado que não podia parar de pé.
Deitamos. Eu estava agitada e
nervosa porque queria passar o dia escrevendo. Custei durmir. Eu fiquei cançada
de tanto correr para ir chamar a Radio Patrulha. Despertei as 4 horas da manhã
com a voz do Alexandre que estava maltratando a sua esposa e chingando o
soldado Edison. Dizia:
– Aquele negro sujo me bateu. Mas
ele me paga! Eu me vingo!
Vendo que o Alexandre não parava
de falar, eu fui na Delegacia. O soldado que estava de plantão disse:
– Favela é de morte!
Disse-me que se o Alexandre
continuasse a perturbar para eu voltar as 6 horas. Voltei para a favela, ele
estava na rua insultando. Resolvi fazer café. Abri a janela e joguei um pouco dagua
no Alexandre.
– Você chamou a Radio Patrulha
para mim. Negra fidida! Mas você me paga!
21 de julho ... Fui catar papel. Estava horrorisada com a cena que
o Alexandre representou de madrugada. Catei muitos ferros e pouco papel. Quando
eu estava perto da banca de jornal tropeei e caí. Devido eu estar muito suja,
um homem gritou:
– É fome!
E me deram esmola. Mas eu caí
porque estava com sono.
Pensei no Alexandre porque ele
não precisa pensar no trabalho. Porque obriga a esposa a pedir esmola. Ele tem
uma filha: a Dica. A menina tem 9 anos. Ela pode esmola de manhã e vai para a
escola a tarde. A menina conhece as letras
e os números. Mas não sabe formar palavras. Quando escreve ela põe qualquer
letra que lhe vem na mente. Mistura números com letras. Escreve assim:
ACR85CZbo4Up7Mno10E20.
E já faz dois anos que ela está
na escola.
... Enquanto eu estava na rua o
Alexandre maltratou a mãe do soldado Edison. Quando eu cheguei êle começou
insultar-me:
– Negra suja. Ordinaria.
Vagabunda. Lixeira.
Eu não tenho paciência, lhe
chinguei, joguei-lhe um vidro no rosto. Êle fechou a janela. Abriu outra vez,
eu lhe joguei uma escova de lavar casa. Êle fechou a janela. Depois abriu e
começou descompor o soldado Edison. O soldado Edison foi falar com êle. Quando
êle viu o soldado assustou-se e disse:
– Aquele tapa que você me deu,
você vai me pagar.
O soldado Edison disse-lhe:
– Então vamos resolver isto logo.
Ajuntou a criançada para
presenciar a cena que eu reprovo. Espetaculo improprio. Enquanto o soldado
discutia com o Alexandre eu fui catar pedras. O soldado Edison deu-lhe um tapa
no rosto. E a criançada deu uma vaia.
... O Alexandre ficou com medo do
soldado, entrou para dentro e fechou a porta. Apagou a luz e não perturbou
durante a noite.
22 de julho ... Eu fui trabalhar e avisei os visinhos:
– Se o Alexandre aborrecer,
avise!
Saí pensando na minha vida
infausta. Já faz duas semanas que eu não lavo roupa por falta de sabão. As
camas estão sujas que até dá nojo.
... Não fiquei revoltada com a
observação do homem desconhecido referindo-se a minha sujeira. Creio que devo
andar com um cartás nas costas:
Se estou suja é porque não tenho sabão.
Cheguei no Frigorifico. Os
meninos entraram e cada um ganhou uma salchicha. Quando eu estava catando o papel
surgiu o espanhol que faz a limpesa e começou gritar comigo. Hoje eu estou nervosa
e não adimito que um extrangeiro grite comigo.
... Tem uma espanhola que vai no
Frigorifico catar carne no lixo e quando vê o espanhol diz:
– Este non é de mi tierra. Isto é português!
E tem uma purtuguêsa que diz:
– Esta besta não é de Portugal!
E eu, para arrematar digo:
Graças a Deus, ele não é
brasileiro!
23 de julho Deixei o leito as 7 horas. Estava indisposta. Graças a
Deus o Alexandre socegou.
... Esquentei comida para os
meninos e comecei preparar para irmos no Centro Divino Mestre, para ganhar roupas
para as crianças. Quando o povo via as mulheres da favela nas ruas perguntava
se nós iamos no Gabinete prestar declarações.
– Houve um conflito — respondi.
E as mulheres sorriam.
No Centro Divino Mestre o senhor
Pinheiro nos recebeu sorrindo. Não havia preconceitos nem distinção de classe.
Eu ganhei duas blusas de malha. Uma para a Vera e outra para o José Carlos.
Quando nós iamos para o Centro Espirita Divino Mestre o João ganhou um pulover.
As palavras do senhor Pinheiro reanimou-me.
24 de julho Como é horrivel levantar de manhã e não ter nada para
comer. Pensei até em suicidar. Eu suicidando-me é por deficiência de
alimentação no estomago. E por infelicidade eu amanheci com fome.
Os meninos ganharam uns pães
duro, mas estava recheiado com pernas de barata. Joguei fora e tomamos café.
Puis o unico feijão para cosinhar. Peguei a sacola e saí. Levei os meninos. Fui
na Dona Guilhermina, na Rua Carlos de Campos. E pedi para ela um pouco de
arroz. Ela deu-me arroz e macarrão.
E eu fiquei conversando com o seu esposo. Ele deu-me umas garrafas para eu
vender. E eu catei uns ferros.
Depois de conseguir algumas
coisas para os meninos comer. Reanimei-me. Acalmei o espirito. Fui no senhor
Manoel vender as garrafas. Ganhei 22 cruzeiros. Comprei 10 de pão e um
cafezinho.
... Cheguei na favela, fiz o
almoço e fui lavar roupas. 3 semanas sem lavar roupas por falta de sabão. As
visinhas ficaram horrorisadas vendo a quantidade de roupas que eu lavei. A Dona
Geralda esposa do senhor João da Purtuguesa veio procurar a Fernanda dizendo
que havia roubado a sua bacia de roupas. E foi vasculhar a casa da mãe da
Fernanda. A Fernanda lhe acompanhou até a sua casa e encontraram a bacia na
cosinha. Ela pediu desculpas a Fernanda e deu-lhe uma garrafa de pinga. Quando
recebeu a garrafa de pinga, ela ficou tão contente. Sorria contemplando a
garrafa. Veio elogiando a Dona Geralda.
– Que mulher boa!
O rancor da Fernanda desapareceu
porque a pinga entrou como intermediaria.
25 de julho ... Achei o dia bonito e alegre. Fui catando papel.
26 de julho ... Eu estava tonta de fome devido ter levantado muito
cedo. Fiz mais café. Depois fui lavar as roupas na lagoa, pensando no
departamento Estadual de Saúde que publicou no jornal que aqui na favela do
Canindé há 160 casos positivos de doença caramujo. Mas não deu remédio para os
favelados. A mulher que passou o filme com as demonstrações da doença caramujo
nos disse que a doença é muito difícil de curar-se. Eu não fiz o exame porque
eu não posso comprar os remedios.
... Mandei o João ir no senhor
Manoel vender os ferros. E eu fui catar papel. No lixo do Frigorifico tinha
muitas linguiças. Catei as melhores para eu fazer uma sopa. (...) Vim pelas
ruas catando ferros. Quando cheguei no ponto do bonde encontrei o José Carlos
que ia na feira catar verduras.
O Adalberto veio procurar roupas.
Não lhe atendi porque ele está ficando muito confiado. Ontem falou pornografia
perto da Vera. E está aborrecendo-me.
... O senhor Manoel chegou.
Deu-me 80 cruzeiros, eu não quiz pegar. Procurei as crianças para tomar banho.
Ficaram alegre quando viu o senhor Manoel. Eu disse para o senhor Manoel que ia
passar a noite escrevendo. Êle despediu-se e disse:
– Até outro dia!
Nossos olhares se encontraram e
eu lhe disse:
– Vê se não volta mais aqui. Eu
já estou velha. Não quero homens. Quero só os meus filhos.
Ele saiu. Ele é muito bom e
iducado. E bonito. Qualquer mulher há de gostar de ter um homem bonito como ele
é. Agradavel no falar.
... O Frei Luiz apareceu e deu
aula de catecismo para as crianças. Fizeram uma procissão. Eu não compareci.
27 de julho ... Esquentei a comida para os meninos e comecei
escrever. Procurei um lugar para eu escrever socegada. Mas aqui na favela não
tem estes lugares. No sol eu sentia calor. Na sombra eu sentia frio. Eu estava
girando com os cadernos na mão quando ouvi vozes alteradas. Fui ver o que era,
percebi que era briga. Vi o Zé Povinho correndo. Briga é um espetaculo que eles
não perdem. Eu já estou tão habituada a ver brigas que já não impreciono. É que
haviam jogado fogo dentro do automóvel do senhor Mario Pelasi. Queimou a
chuteira, as meias e os tapetes do carro. Os meninos viu a fumaça no carro e
foi avisá-lo. Ele estava jogando fut-bol.
28 de julho .... Deixei o João e levei só a Vera e o José Carlos.
Eu estava tão triste! Com vontade de suicidar. Hoje em dia quem nasce e suporta
a vida até a morte deve ser considerado heroi. (...) O verso preferido era este:
Ouço o povo dizer
O Adhemar tem muito dinheiro
Não tem direito de enriquecer
Quem é nacional, quem é brasileiro?
Bem: vamos deixar o Dr. Adhemar
em paz porque ele está com a vida mansa. Não passa fome. Não come nas latas de
lixo igual os pobres. Quando eu ia na residencia do Dr. Adhemar encontrei um
senhor que deu-me este cartão: Edson Marreira Branco.
Estava tão bem vistido que atraiu
os olhares. Disse-me que pretendia incluir-se na politica. Perguntei-lhe:
– Quais são suas pretensões na
politica?
– Quero ficar rico igual ao Adhemar.
Fiquei horrorisada. Ninguem mais
apresenta amor patriotico.
Quando passei no Frigorifico
encontrei com a dona Maria do José Bento que disse-me:
– Se a gente não catar um pouco
vamos acabar ficando loucos. Só Deus pode ter dó de nós, os pobres.
Ensinei-lhe a catar os alhos. E
eu catei um pouco de carvão. Despedi da dona Maria e segui. Encontrei com a
dona Nenê, a diretora da Escola Municipal, professora do meu filho João José.
Disse-lhe que ando muito nervosa e que tem hora que eu penso em suicidar. Ela
disse-me para eu acalmar. Eu disse-lhe que tem dia que eu não tenho nada para
os meus filhos comer.
30 de julho ... Ganhei 15 cruzeiros e passei no sapateiro para ver
se os sapatos da Vera estavam prontos, porque ela reclama quando está descalça.
Estava pronto e ela calçou o sapato e começou a sorrir. Fiquei olhando a minha
filha sorrir, porque eu já não sei sorrir.
... Encontrei a Rosalina que
estava discutindo com o Hélio. Êle não quer que fala que êle e a Olga pede
esmola. A Rosalina dizia que ela é sosinha e sustenta 3 filhos. É que ela não
sabe que o seu filho Celso anda dizendo que quer fugir de casa porque tem nojo
dela. Acha a mãe muito barbara e avarenta. Êle diz que queira ser meu filho.
Então eu lhe digo:
Ele respondeu-me:
— Mas se eu fosse teu filho eu não passava fome. A mamãe ganha pão duro e
nos obriga a comer os pães duro até acabar.
Segui pensando na desventura das crianças que desde pequeno lamenta sua
condição no mundo. Dizem que a Princesa Margareth da Inglaterra tem desgosto de
ser princesa. São os dilemas da vida.
31 de julho Acendi o fogo e fui buscar agua.
Mandei o José Carlos buscar 6 de açucar. O Luiz que fez a cerca para mim entrou
e sentou-se. Eu disse-lhe que eu ia sair e quando saio gosto de deixar os meus
filhos sosinhos.
Eu saí correndo e fui catar papel. Havia pouco papeis nas ruas. Eu já estou
aborrecendo de catar papel, porque quando eu chego no deposito tem a Cicilia
que trabalha lá e é muito bruta. Insulta-me e eu finjo não ouvir. Diz que sou fidida. Dia
27 a Cicilia não deixou o José Carlos ir no mitorio. A Cicilia é tão bruta que
a sua presença afasta o dono no deposito.
Hoje eu não estou nervosa. Estou triste. Porque eu penso as coisas de um
jeito e corre de outro. O Antonio Nascimento que residia aqui na favela
mudou-se. Ele e a sua companheira. Eles estavam mal colocados aqui na favela. Ninguem apreciava eles aqui na
favela. Porque ele abandonou os 4 filhos, e ela os 3 filhos. 7 crianças
sofrendo por causa dos pais. O que ela lucrou deixando o seu esposo e os
filhos? Largou um homem calçado e pegou outro descalço.
1 de agosto ... A Assistencia estava chegando. Vinha examinar o
Purtuguês que vende doces. Dia 28 de julho eu fui visita-lo. Êle queria uma
Assistencia. Aludiam que ele não paga o IAPTC e não vinham. Quando cheguei na
favela fui visitá-lo. Ele estava gemendo e tinha duas senhoras purtuguesas que
lhe visitava. Perguntei-lhe se estava melhor. Disse-me que não. A purtuguesa perguntou-me:
– O que é que a senhora faz?
– Eu cato papel, ferro, e nas horas vagas escrevo.
Ela disse-me com a voz mais sensata que já ouvi até hoje:
– A senhora vai cuidar de sua vida!
2 de Agosto — Vesti os meninos que foram para a escola. Eu saí e fui girar para arrancar
dinheiro. Passei no Frigorifico, peguei uns ossos. As mulheres vasculham o lixo
procurando carne para comer. E elas dizem que é para os cachorros. Até eu digo
que é para os cachorros...
3 de agosto ... Hoje os meninos vão comer só pão duro e feijão com farinha. Eu estou com tanto sono que não
posso parar de pé. Estou com frio. E graças a Deus não estamos com fome. Hoje
Deus está ajudando-me. Estou indecisa sem saber o que fazer. Estou andando de
um lado para outro, porque não suporto permanecer no barracão limpo como está.
Casa que não tem lume no fogo fica tão triste! As panelas fervendo no fogo
também serve de adorno. Enfeita um lar.
Fui na dona Nenê. Ela estava na cosinha. Que espetaculo maravilhoso! Ela
estava fazendo frango, carne e macarronada. la ralar meio queijo para por na macarronada!
Ela deu-me polenta com frango. E já faz uns 10 anos que eu não sei o que é
isto.
... Na casa de dona Nenê o cheiro de comida era tão agradável que as lagrimas
emanava-se dos meus olhos, que eu fiquei com dó dos meus flihos. Eles haviam de gostar daqueles quitutes.
Quando cheguei na favela a Leila e o Arnaldo estavam dando os seus espetaculos. E a criançada estavam apreciando.
Eu estava escrevendo quando a Vera veio avisar-me que estavam dando cartões
e que havia muitas pessoas na rua. Fui correndo para
ver. Varias pessoas acompanhava um senhor alto e loiro que conduzia um menino de 10 anos pela mão. Ele
usava calças cinza claro e paletó azul anil. Passou por mim e deu-me um abraço. Fiquei perplexa com aquele abraço sem apresentação. É a
primeira vez que vejo o homem.
A cunhada do Coca-Cola disse-me:
— Este é nosso deputado. Dr. Contrini.
Quando ela disse deputado federal pensei: é época de eleições, porisso é
que eles está tão amavel.
...O senhor Contrini veio nos dizer que é candidato nas eleições. Nós da favela
não somos favorecidos pelo senhor. Não te conhecemos.
6 de agosto Fiz café para o João e o José Carlos, que hoje
completa 10 anos. E eu apenas posso dar-lhe os parabens, porque hoje nem sei
se vamos comer.
7 de agosto Deixei o leito as 4 horas. Eu não dormi porque
deitei com fome. E quem deita com fome não dorme.
... Vi o fiscal circulando e falando. Fui ver do que se tratava. Estava
procurando o senhor Tiburcio. Ele faz barracão para vender. Ele pede esmola na
rua Direita. Ele não precisa e não reside na favela. Ele já construiu sete
barracões e vendeu. O Tiburcio tem o fisico defeituoso e a alma também.
Quando o João chegou da escola dei-lhe almoço. Depois fomos na cidade.
Fomos a pé porque não tinha dinheiro para pagar a condução. Levei uma sacola e
ia catando os ferros que encontrava nas ruas. Passamos pela rua da Cantareira.
A Vera olhava os queijos e engulia as salivas.
... A dona Alice contou-me que o Policarpo nortista que reside aqui na favela
pois uma preta para residir na sua casa. Disse para a mulher que ela era sua
prima. E a mulher é muito boa e aceitou a prima em casa com prazer. E a prima
ficou em casa varios dias. A mulher do Policarpo saía e ele ficava com a prima.
E um dia, a dona Maria ao chegar em casa, encontrou o Policarpo e a prima, na
copola. Ela não gostou e brigaram. E o Policarpo saiu de casa com a prima e foi
para Descalvado. Levou os moveis e deixou só a cama.
8 de agosto Saí de casa
as 8 horas. Parei na banca de ais para ler as noticias principais. A Policia ainda não deu o Promessinha. O bandido insensato porque a sua identidade não lhe permite conhecer as regras do bom viver. Promessinha é da favela da
Vila Prudente. Êle comprova o que digo: que as favelas não formam carater. A favela é o quarto de despejo. E as autoridades
ignoram que tem o quarto de despejo.
... Fui lavar as roupas. Na lagoa estava a Nalia, a Fernanda e a Iracema,
que discutiam religião com uma senhora que dizia que a verdadeira religião é a
dos crentes.
A Fernanda diz que a Bíblia não manda ninguém casar-se. Que manda crescer e
multiplicar. Eu disse para a Fernanda que o Policarpo é crente e tinha varias
mulheres. Então a Fernanda disse que o Policarpo não é crente. — E quente!
Achei graça no trocadilho e sorri. Dei uma gargalhada. E coisa que eu não
discuto é religião.
Terminei as roupas e deixei a discussão no auge. (...) Hoje a Assistência esteve aqui duas vezes, porque a Aparecida
teve um aborto.
A Quita veio no meu barracão reclamar que o José Carlos havia jogado bosta
no rosto da Marli, e que eu devo dar mais iducação ao meu filho.
9 de agosto Deixei o leito furiosa. Com vontade de quebrar e
destruir tudo. Porque eu tinha só feijão e sal. E amanhã é domingo.
... Fui nasapataria retirar os papeis. Um sapateiro per-guntou-me se o meu livro é
comunista. Respondi que é realista. Êle disse-me que não é aconselhável
escrever a realidade.
... Aqui na favela está um reboliço. E que o deputado Francisco Franco deu
material para terminar a sede do Rubro Negro. Deu as telhas e as camisas e o
povo da favela fala diariamente neste deputado. Vão fazer uma festa para homenageá-lo.
Pag 106
10 de agosto Dia do
Papai. Um dia sem graça.
11 de agosto ... Eu estava pagando o sapateiro
e conversando com um preto que estava lendo um jornal. Ele estava revoltado com um guarda
civil que espancou um preto e amarrou numa arvore. O guarda civil é branco. E
há certos brancos que transforma preto em bode expiatório. Quem sabe se guarda
civil ignora que já foi extinta a escravidão e ainda estamos no regime da
chibata?
Assustei quando ouvi meus filhos gritar. Conheci a
voz da Vera. Vim ver o que havia. Era o Joãozinho, filho da Deolinda, que
estava com um chicote na mão e atirando pedra nas crianças. Corri e
arrebatei-lhe o chicote das mãos. Senti o cheiro de alcool. Pensei: ele está bebado
porque ele nunca fez isto. Um menino de 9 anos. O padrasto bebe, a mãe bebe e a
avó bebe. E ele é quem vai comprar pinga. E vem bebendo pelo caminho.
Quando chega, a mãe pergunta
admirada:
— Só isto? Como os negociantes
são ladrões!
12 de agosto Deixei o leito as 6 e meia e
fui buscar agua. Estava na fila enorme. E o pior de tudo é a meledi-cencia que
é o assunto principal. Tinha uma preta que parece que foi vacinada com agulha
de vitrola. Falava do genro que brigava com sua filha. E a Dona Clara ouvia
porque era a única que lhe dava atenção.
Atualmente é difícil para pegar agua, porque o povo
da favela duplica-se. E a torneira é só uma.
13 de agosto . .
.Vieram queixar-se que a Zefa brigou com uma nortista e discutiram. Os calões
entraram em ação. Eu só tenho dó das crianças que ouvem os impropérios. A Zefa
é mulata. É bonita.
É uma
pena não saber ler. Só que ela bebe muito. Ela já teve duas filhas, e bebia
muito. Esquecia de alimentar as crianças, e elas morreram.
. . . Eu mandei o João levar um bilhete no Circo
Irmãos Mello pidindo se aceitava-me para cantar. Depois fui lavar as roupas. Eu
estava preparando para ir no circo quando ouvi rumores que o Anselmo havia
atirado no João Coque. Eu estava escrevendo, esperando o arroz secar. Guardei o
caderno e fiquei
girando, procurando o João. Encontrei ele sentado
no campo da Purtuguesa, segurando as pernas com uma mão e a bola na outra.
Perguntei=lhe se já tinha ido chamar a Policia. Ele disse-me que sim.
Queixou-se que a perna estava sem ação. Ele tentou
calçar os sapatos e encontrou dificuldades. Dei-lhe os meus chinelos. Os
curiosos aglomeraram. Não havia comentários. O povo chingava só o Anselmo. Vou
contar quem é o Anselmo. Depois relato quem é o João.
O Anselmo apareceu aqui em 1950 com uma mulher que
estava gravida. Quando a mulher deu a luz, um menino, ele começou maltratá-la.
Ela estava de dieta e ele lhe expancava e lhe expulsava de casa. Ela chorava
tanto que o leite "secou. (...) Agora
impricou com o João porque ele está namorando a Iracema. E o barracão da
Iracema é perto do barraco do Anselmo. E o João conversa com a noiva perto da
casa do Anselmo, que não quer. Deu ordem ao João para ir namorar perto do rio.
... O João
estava na sua casa tomando café quando o Anselmo lhe chamou para conversar. O
João disse-lhe que havia chegado do trabalho e não podia atendê-lo. la entrando
quando o Anselmo lhe atirou. Ele não viu o Anselmo puchar a arma. O Anselmo
visava o peito. Mas a bala atingiu a perna.
O Anselmo fugiu.
... O povo
diz que vai reunir para expancar o Anselmo. (...) O João foi fazer curativo na
Central e retornou-se. Perguntei-lhe se havia tomado anestesia. Disse-me que
tomou só ingeção contra o teto.
E assim é mais um processo para a Delegacia.
14 de agosto . . . O
Ditinho filho da Nena é um veterano da favela. Mas é um pelado. Não aprendeu
ler. Não aprendeu um oficio. Só aprendeu beber pinga. A Nena tinha um barracão
na Rua do Porto. Bem construído. Mas o Tiburcio tapeou a pobre Nena. Trocou os barracões. Deu-lhe um mal
construído ê ficou com o dela. Depois, êle vendeu por quinze mil cruzeiros.
. . . Fui até o Deposito, ganhei 15 cruzeiros. Passei no sapateiro, para
mandar êle concertar os sapatos da Vera. Fiquei percorrendo as ruas. Estava
nervosa, porque estava com pouco dinheiro, e amanhã é feriado. Uma senhora que
regressava da feira disse-me para eu ir buscar papeis na rua Porto Seguro, no
prédio da esquina, 4 andar, 44.
Subi no elevador, eu e a Vera. Mas eu estava com tanto medo, que os minutos
que permaneci dentro do elevador pareceu-me séculos. Quando cheguei no quarto
andar respirei aliviada. Tinha a impressão que estava saindo de um tumulo.
Toquei a campainha. Surgiu a dona da casa e a criada. Ela deu-me um saco de
papeis. Os dois filhos dela cohduziu-me no elevador. O elevador em vez de
descer, subiu mais dois andares. Mas eu estava acompanhada, não tive receio.
Fiquei pensando: a gente fala que não tem medo de nada, as vezes tem medo de
algo inofensivo.
No sexto andar o senhor que penetrou no elevador oíhou-me com
repugnância. Já estou familiarisada com estes olhares. Não entristeço.
Quiz saber o que eu estava fazendo no elevador. Expli-quei-lhe que a mãe
dos meninos havia dado-me uns jornaes. Era este o motivo da minha presença no elevador. Perguntei-Ihe se era medico ou
deputado. Disse-me que era senador.
O homem estava bem vestido. Eu estava descalça. Não estava em condições
de andar no elevador.
Pedi ao jornaleiro para ajudar-me a por o saco nas costas, que o dia que
eu estivesse limpa eu lhe dava um abraço. Ele sorriu e disse-me:
— Então já sei que vou morrer sem receber o teu abraço, porque você nunca
está limpa.
Ele ajudou-me por os papeis na
cabeça. Fui na fabrica, depois fui no senhor Rodolfo. Ganhei mais 20 cruzeiros!
Depois fiquei cançada. Voltei para casa. Estava tão cançada que não podia ficar
de pé. Tinha a impressão que ia morrer. Eu pensava: se eu não morrer, nunca
mais hei de trabalhar assim. Eu estava com falta de ar. Ganhei 100 cruzeiros.
Fui deitar-me. As pulgas não me
deixou em paz. Eu já estou cançada desta vida que levo.
15 de agosto ... Eu ia catar esterco para levar na casa da Ivani, quando vi um caminhão
na Rua A, parado
na porta do Anselmo. A Florenciana e a Dona Lurdes vinha avisar o João Coque
que o Anselmo ia mudar-se. Para êle ir chamar a policia. Éle não pode andar porque levou o tiro na perna. Eu fui.
Em cinco minutos a noticia circulou que eu tinha ido telefonar para a
policia, para impedir a mudança do Anselmo. Eu cheguei antes da Policia e os
favelados, assim que me viram perguntaram:
— Cadê a Policia, Carolina?
Se eu guardasse todo o dinheiro que já gastei telefonando para a Radio
Patrulha, eu podia comprar um quilo de carne!
. . . O povo estava esperando o Anselmo aparecer para lhe expancar.
Reuniram homens e mulheres para o bate-fundo.
. . . Ouvi dizer que o Anselmo pulou a cerca e saiu pelo fundo. Eu disse
que eu queria ser homem, porque assim eu podia quebrar e bater. Então um homem
respondeu:
— Eu queria ser mulher, mas só
de dia. E todos sorriram.
... O Lalau e a sogra brigaram. Ela deu-lhe com o cabo da vassoura. Ela corria
e lhe perseguia. Estavam bêbados.
16 de agosto Passei na sapataria. O senhor Jacó estava nervoso. Dizia que se viesse o
comunismo ele havia de viver melhor, porque o que a fabrica produz não dá para
as despesas.
Antigamente era os operarios que queria o comunismo. Agora , sao os
patroes. O custo de vida faz o operario perder a simpatia pela democracia.
O saco de papeis estava muito pesado e um operario ajudou-me erguê-lo.
Estes dias eu carreguei tanto papel que o meu ombro esquerdo está ferido.
Quando eu passava na Avenida Tiradentes, uns operarios que saíam da
fabrica disse-me:
– Carolina,
já que você gosta de escrever, instiga o povo para adotar outro regime.
Um operario
perguntou-me:
– É verdade
que você come o que encontra no lixo?
– O custo de
vida nos obriga a não ter nojo de nada. Temos que imitar os animais.
17 de agosto ... Quando eu fui almoçar fiquei
nervosa porque não tinha mistura. Comecei ficar nervosa. Vi um jornal com o
retrato da deputada Conceição da Costa Neves, rasguei e puis no fogo. Nas
epocas eleitoraes ela diz que luta por nós.
18 de agosto
... As segundas-feiras eu não gosto de perder. Saio cedo porque encontra-se
muitas coisas no lixo. Saí com a Vera. Eu tenho tanto dó da minha filha!
Fui na Dona
Julita, peguei papel. Ganhei 55 cruzeiros. O que é que se compra com 55
cruzeiros?
Fiquei
nervosa. Quando cheguei em casa deitei porque catei uns trinta quilos de ferros
e latas. E conduzi na cabeça. Depois que eu descancei fui na Rosalina pedir o
carrinho para levar os ferros no deposito. Ela emprestou-me e eu carreguei o
carrinho. Eu estava com frio. Fui recebida com alegria pelo senhor Manoel.
Pesei o material e recebi 191 cruzeiros.
Passei na
Padaria Guiné e comprei uma guaraná e bananas. Puis a Vera no carrinho. Quando
cheguei na favela estava moida. O João disse-me:
– Já que a
senhora tem dinheiro, podia mandar arrancar meu dente, porque está doendo.
Mandei ele
vestir-se e lavar os pés.
Eu ia sair
suja. Depois pensei: é melhor trocar-me. Troquei-me. Saí as pressas. Quando ia
na rua Felisberto de Carvalho ouvi dizer que havia briga. Fui ver. Era a Meiry,
a Pitita, o Valdemar e o Armim. O purtuguês tripeiro já havia terminado a venda
dos miudos e ia para casa. Ele conhece a Meiry e parou e parou para conversar.
Surgiu o Valdemar e lhe pediu a bicicleta para dar umas voltas. O purtuguês
responde:
– Quer
bicicleta, compra.
E assim
começou a troca de insultos. O Valdemar está habituado a dar nos favelados, deu
um tapa no purtuguês. O purtuguês deu um soco no Valdemar e jogou-lhe no chão.
O Armim foi a favor do Valdemar e jogou um tijolo no rosto do purtuguês, que
caiu e a carteira caiu-lhe do bolso. Quando as faveladas viram a carteira
ficaram loucas. E avançaram todos ao mesmo tempo para pegar a carteira. Quando
cheguei perto da Ana do Tiburcio perguntei o que houve, ela começou
explicar-me. E a Isabel sorria e dizia:
– Parecia
chuva de dinheiro!
Eu corri e
passei perto do Valdemar e do Armim que estavam sorrindo como se tivessem
praticado um ato nobre. De longe eu vi o purtuguês que estava cheio de sangue.
E o Valdemar disse:
– Não foi
nada, D. Carolina.
Eu disse
para o Armim:
– Dá o
dinheiro do purtuguês.
Ele
respondeu-me:
– Eu não sei
de nada!
Quando eu cheguei perto do
purtuguês a Meiry estava lhe entregando a carteira. E o português dizia:
– Está
faltando dinheiro.
Tinha uma
moça branca perto da Meiry, que lhe chamava:
— Vamos, Meiry.
O purtuguês deu um pouco de carne para a Meiry. Era um coração.
... Fui levar o João no dentista. Vi uma placa na rua Itaqui, 2. Dentista.
Dr. Paulo de Oliveira Porto.
Toquei a campanhinha e entrei. Uma senhora veio aten-der-me. Eu sentei para
esperar. Mas estava aflita por causa dos filhos que haviam ficado sosinho. O
Dr. Paulo veio atender e eu disse-lhe que êle é o dentista que está mais perto
da favela e queria que extraísse um dente do meu filho João. O João sentou-se
na cadeira.
— Quanto é, doutor?
— Cem cruzeiros!
Achei o preço exagerado. Mas êle já estava sentado na cadeira.
Abri a bolsa e sentei. E comecei contar as notas de 5. Separei 20 notas de
5.
19 de agosto Eu não dormi. Saí do leito nervosa. Fui carregar
agua.
O soldado Flausino disse-me que a C. era amante do pai. Que ela havia dito
que ia com o pai e ganhava 50 cruzeiros.
Eu contei na torneira e as mulheres disseram que havia desconfiado.
Dia a dia a vida dos favelados piora com a fila de agua.
... A Vera estava alegre porque eu comprei uma alpar-gata para ela. De manhã ela
havia chorado porque estava com os sapatos furados.
20 de agosto Saí e fui catar papel. Não conversei com ninguém. Encontrei com o
fiscal da Prefeitura que brinca com a Vera dizendo que ela é sua namorada. E
deu-lhe 1 cruzeiro e pediu-lhe um abraço.
Penetrou um espinho no meu pé e eu parei para retirá-lo. Depois amarrei um
pano no pé. Catei uns tomates e vim para casa. Agora eu estou disposta. Parece
que trocaram as peças do meu corpo.
Só a minha alma está triste.
... Cheguei no ponto final do Canindé. Passei na COAP para comprar arroz. O
mais barato, que já está velho e com gosto de terra.
21 de agosto ... Fiz café e mandei os filhos lavar-se para ir na escola. Depois saí e fui catar papel. Passei
no Frigorifico e a Vera foi pedir salchicha. Ganhei só 55 cruzeiros. Depois
voltei e fiquei pensando na minha vida. O Brasil é predominado pelos brancos. Em muitas coisas eles
precisam dos pretos e os pretos precisam deles. (...) Quando eu estava preparando para fazer o jantar ouvi a voz da Juana que pediu-me alho. Dei-lhe 5 cabeças. Depois fui fazer
o jantar e não tinha sal. Ela deu-me um pouco.
22 de agosto Deixei o leito as 5 horas e fui carregar agua. A fila já estava enorme. Eu tinha só 4 cruzeiros e um litro. Fui no senhor
Eduardo, ele ficou com o litro e os 4 cruzeiros e deu-me um pão. Eu achei pequeno, mas o dinheiro era pouco.
... Fiz café e preparei os filhos para ir a escola. Fui catando papel.
Catei estopas para vender. Passei numa casa da Avenida Tiradentes e levei 50 quilos de papel que
uma senhora deu-me para vender para ela. Levei na cabeça e vendi. Deu 100 cruzeiros. Ela ficou alegre.
... Tem dia que eu invejo a vida das aves. Eu ando tão nervosa que estou
com medo de ficar louca.
23 de agosto ... Hoje não tem aula porque é dia de reunião das
professoras com os pais. Eu pretendo ir. Saí e levei os três filhos. Hoje eles estão distintos. Não estão brigando. Até eu
estou mais calma. Noto transformação em mim.
Passei no Frigorifico para pegar os ossos. No inicio eles nos dava linguiça. Agora nos dá ossos. Eu fico horrorisada vendo a paciencia da mulher pobre que contenta com qualquer
coisa.
As crianças ficam contente porque ganham salchicha. Eu segui e fui para o deposito. Encontrei umas latas,
ocultei no mato. Quando eu atravessava
a linha do trem, olhei para ver se surgia algum trem e vi a Dona Armanda.
Perguntei-lhe se o seu filho Aldo havia deixado um caderno para mim.
... Havia tanto papel nas
ruas, que ganhei 100 cruzeiros. Comprei sanduíche para os filhos. Eles gostam
de andar comigo porque compro algo para eles comer.
A mãe está sempre pensando que os filhos estão com fome.
... Lavei as louças e varri o
barraco. Depois fui deitar. Escrevi um pouco. Senti sono, dormi. Acordei varias
vezes na noite, com as pulgas que penetra nas nossas casas, sem convite.
24 de agosto ...Fui
lavar roupas. O sabão era pouco. A Dona Dolores deu-me uns pedaços. Eu comecei
sentir tonturas, porque estava com fome.
... Fui
na Chica. Ela disse-me que o Policarpo veio brigar com a esposa porque ela deu
parte dele no Juiz.
... A Dorça
disse-me que o peixeiro que o Armim e o Valdemar já assaltaram, jogou um saco
no rosto do Valdemar, e enquanto êle porcurava livrar-se do saco, êle lhe
arrebatou o porrete das mãos e vibrou-lhe umas cacetadas, e eles correram.
O João e o José Carlos foram
no cinema da igreja do Pari. Hoje eu estou indisposta. Lavei as roupas de
qualquer geito porque não sei se amanhã eu amanheço doente.
Não sei qual é o desgraçado
que entra no barracão para roubar. Porque sumiu a minha machadinha.
25 de agosto Fui buscar agua e fiz café. Não comprei pão. Não
tinha dinheiro. Eu ia levar os filhos, vi uma menina que ia na aula,
perguntei-lhe se ia ter aula. Disse-me que sim. Eu vesti o José Carlos, e o
João foi do geito que estava. Prometi levar-lhe um lanche. E saí com a Vera.
Não havia papeis nas ruas porque apareceu outro homem para catar. Achei ferros
e metaes.
26 de agosto . . . Cheguei na favela e esquentei
a comida. Estava indisposta. Almocei e deitei. Adormeci. Que sono gostoso! Sem
sonho, sem pesadelos.
Despertei com a voz da baiana
que estava chingando os meus filhos e jogando pedras nas crianças. Aqui na
favela ninguém lhe dá confiança porque ela briga por causa de criança. Fui
falar com a Dona Alice. Que estou muito triste. Ela disse-me que a Pitita
estava brigando com um senhor e disse-lhe que a mãe dele é pior do que a
galinha. (...)O homem deu parte e a
policia veio procurá-la. E ela fugiu.
27 de agosto . . .A Dona Irene deu-me jornaes. Vendi, ganhei
30 cruzeiros. Vendi uns jornaes para uma professora. Ganhei 40 cruzeiros. Ela
deu-me 20. Eu ganhei mais 5. Fiquei com 55. Passei na Fabrica (...) para catar uns tomates. Cheguei em
casa e pedi o carrinho da Rosalina emprestado e fui buscar madeira para fazer o
chiqueiro. Levei a Vera e o José Carlos. Depois fiquei vagabundando. Depois que
eu trabalho e ganho dinheiro para os meus filhos, vou descançar. É um descanço
justo.
28 de agosto Fui carregaragua. Que fila!
Quando eu vejo a fila de latas fico desanimada de viver. Deixei as latas na
fila e vim fazer café. Despertei o João. Êle abiuiu-se e foi comprar pão. Eu
lavei as louças e desinfetei o José Carlos. Troquei-lhe, dei-lhe café. Eles
foram para a escola. Eu fui buscar agua. Havia querelas por causa de umas
passar na frente das outras.
30 de agosto . .
.Passei no Frigorifico, ganhei ossos. Cheguei no deposito, ganhei 10 cruzeiros. Depois circulei pela rua
Porto Seguro. Encontrei com aquele moço loiro, alto e bonito. 0 tipo de homem
que as mulheres gostam de abraçar. Ele trabalha no Transporte. Ele parece o
Nelson Edy. Ele parou para comprimentar-me.
Fui no senhor Eduardo comprar
querosene, oleo, e tinta para escrever. Quando eu pedi o tinteiro, um homem que
estava perto perguntou-me se eu sabia ler. Disse-lhe que sim. Ele pegou o lápis e escreveu:
A senhora ó casada? Se
não for quer dormir comigo?
Eu li e entreguei-lhe, sem dizer nada.
31 de agosto . . .Dizem que vai ter baile por
causa do batisado da menina da Leila.
Estão cantando e bebendo.
1 de setembro ... Eu fui na feira, comprei
uma laranja. Cheguei em casa a Vera estava no quintal. Dei-lhe uma sova.
2 de setembro Acendi o fogo e esquentei comida para os filhos porque não tinha
dinheiro para comprar pão. Troquei
os filhos que foram para a escola. E eu saí com a Vera. Quase fiquei louca.
Porque havia pouco papel na rua. Agora até os lixeiros avançam no que os catadores de papeis podem pegar. Eles são egoístas. Na rua Paulino Guimarães tem um deposito de ferro. Todos os
dias eles põe o lixo na rua, e lixo tem muito ferro. Eu catava os ferros para vender. Agora, o carro que faz a coleta, antes de iniciar a coleta vem na rua Paulino Guimarães e pega o lixo e põe no carro. Nogentos. Egoistas.
Eles já tem emprego, tem hospital,
farmacia, médicos. E ainda vende no
ferro velho tudo que encontra no lixo. Podia deixar os ferros para mim.
. . . Passei a tarde arranjando
as latas. Depois fui na Beta Vista buscar um caixote. Quando eu passava perto
do Frigorifico o caminhão de ossos estava estacionado. Pedi uns ossos para o
motorista. Ele deu-me um que eu escolhi. Tinha muita gordura.
... Fiz a sopa e comecei escrever. A noite surgiu. O João jantou-se e
deitou-se. Puis a Vera no berço. O José Carlos estava na rua, com medo de
apanhar, porque ele é muito porco. Sujou a camisa de barro. Eu fiz um chiqueiro
e vou por ele morando com o porco. Hão de dar-se bem.
A Pitoca passou na rua convidando o povo para ir ver o cineminha. Chamou o
João. Eu disse que ele já estava dormindo. Fui ver o cineminha. Era desenho da
Igreja.
No Play Boy (NOTA
2: A autora refere-se a um
"play-ground" instalado na favela do Canindé pela Prefeitura.) que o Adhemar pois aqui para as crianças, a noite são os marmanjos que
brincam. O Bobo fazia tanto barulho que deturpava o espetaculo. Os favelados no fio eletrico que liga a
maquina. E a maquina desligava. Os
próprios favelados falam que favelado não tem iducação. Pensei: vou escrever.
Quando eu voltava encontrei com o Paulo que vive com a Dona Aurora. Ela tem
uma filha mulata clara. Ela diz que a filha é filha do Paulo. Mas, as feições não condiz.
... Eu durmi. E tive um sonho maravilhoso. Sonhei que eu era um anjo. Meu
vistido era amplo. Mangas longas cor de rosa. Eu ia da terra para o céu. E
pegava as estrelas na mão para contemplá-las. Conversar com as estrelas. Elas
organisaram um espetaculo para homenagear-me. Dançavam ao meu redor e formavam
um risco luminoso.
Quando despertei pensei: eu sou tão pobre. Não posso ir num
espetaculo, por isso Deus envia-me estes sonhos deslumbrantes para minh'alma dolorida. Ao Deus que me
proteje, envio os meus agradecimentos.
3 de setembro Ontem comemos mal. E hoje
pior.
8 de setembro Hoje eu estou alegre. Estou rindo
sem motivo. Estou cantando. Quando eu canto, eu componho uns versos. Eu canto
até aborrecer da canção. Hoje eu fiz esta canção:
Te mandaram uma macumba
e eu já sei quem mandou
Foi a Mariazinha
Aquela que você amou
Ela disse que te amava
Você não acreditou.
9 de setembro Não houve aula porque o presidente da
Italia vai chegar em São Paulo. Não saí porque está chovendo. (...) Passei o dia escrevendo. E a
tarde fiz uma sopa de feijão com arroz.
14 de setembro ... Hoje é o dia da páscoa de Moysés.
O Deus dos judeus. Que libertou os judeus até hoje. O preto é perseguido porque
a sua pele é da cor da noite. E o judeu porque é inteligente. AAoysés quando
via os judeus descalços e rotos orava pedindo a Deus para dar-lhe conforto e
riquesas. É por isso que os judeus quase todos são ricos.
Já nós os pretos não tivemos um profeta para orar por nós.
18 de setembro Hoje eu estou alegre. Eu estou procurando
aprender viver com o espirito calmo. Acho que é porque estes dias eu tenho tido
o que comer.
. . .Quando eu vi os empregados da Fabrica ( ) olhei os letreiros que eles
trazem nas costas e escrevi estes versos:
Alguns homens em São Paulo
Andam todos carimbados
Traz um letreiro nas costas
Dizendo onde é empregado.
19 de setembro ... No Firgorifico eles não põe mais
lixo na rua por causa das mulheres que catavam carne podre para comer.
20 de setembro ...Fui no empório, levei 44 cruzeiros. Comprei um quilo de açúcar, um de
feijão e dois ovos. Sobrou dois cruzeiros.
Uma senhora que fez compra gastou 43 cruzeiros. E o senhor Eduardo disse:
—
Nos gastos quase que vocês empataram.
Eu disse:
—
Ela é branca. Tem direito de gastar mais.
Ela disse-me:
—
A cor não influi.
Então começamos a falar sobre o preconceito. Ela disse-me que nos Estados
Unidos eles não querem negros nas escolas.
Fico pensando: os norte americanos são considerados os mais civilisados do
mundo e ainda não convenceram que preterir o preto é o mesmo que preterir o sol. O homem não pode lutar com
os produtos da Natureza. Deus criou todas as raças na mesma época. Se criasse os
negros depois dos brancos, aí os brancos podia revoltar-se.
23 de setembro . . . Fui na Dona Julita. Ela deu-me comida. Ela está nervosa porque o senhor João está doente. Ele disse que
não odeia os que lhe lesaram. Que ele ficando pobre viu muitas nobrêsas nas
pobrêsas.
Percebi que entre os ricos há sempre uma divergencia por questões, de
dinheiro. Não posso esclarecer estas questões porque sou pobre como rato.
25 de setembro . . . Não dormi por estar exausta. Pensei até
que ia morrer. Eu tenho impressão que estou num deserto. Tem hora que eu odeio
o repórter Audálio Dantas. Se êle não prendesse o meu livro eu enviava os
manuscritos para os Estados Unidos e já estava socegada.
Levantei-me duas vezes para matar os pernilongos.
... Quando eu estava conversando com a Chica a companheira do Policarpo
chamou-me. Eu não fui. Ela dirigiu-se para o interior de sua casa e voltou com
uma intimação e entregou-me. Para eu ir no Gabinete de Investigação amanhã, dia 26 e levar
o João.
É que no dia 8 de julho de 1958 ela disse-me que o meu filho João de 11
anos havia tentado violentar a sua filha. Eu não vi porque eu estava
trabalhando. E ela não apresentou testemunha.
26 de setembro . . . Preparei o almoço para os filhos. Eles
chegaram da escola, almoçaram e eu troquei-me e fui no Gabinete. Levei os
filhos. (...) No Gabinete resolveram alugar um automóvel para nos conduzir até a Rua
Asdrúbal do Nascimento (NOTA 3: Juizado
de Menores.).
... Nós éramos sete pessoas no carro. Condoeu-me ver uma jovem que nos
acompanhava. Ela disse-me que faz um ano que a
sua mãe faleceu. Que o seu pai lhe dirige uns
olhares que lhe apavora. E que ela tem medo de ficar com éle em casa.
... Chegamos na Rua Asdrúbal
do Nascimento.(...) Eu
fui falar com uma senhora que queria saber o que ocorria com o João.
Ela perguntou ao João se ele
sabia o que era fazer porcaria. Ele disse que sabia.
E se ele havia feito porcaria
na menina. Ele disse que não.
A funcionaria que interrogava
parou de escrever e leu uns papeis.(...) Ela
prosseguiu o seu interrogatorio. Usava
o calão com o menino. E as perguntas obcenas, querendo que o menino descrevesse
e relatasse os prazeres sexuaes.
Achei o interrogatorio
horroroso. A Vera e o José Carlos ficaram perto para ouvir o que a mulher
dizia. Quando a funcionaria falava eu tinha a impressão que estava na favela.
30 de setembro . . . Eu
estou a espera do oficial de Justiça senhor Feliciano Godoy. Ele deu-me umas
intimações para distribuir aqui na favela. A Isabel não foi porque quem bebe
não obedece. Ela fez as pazes com o negro dela.
Para ela, hoje é dia de amor.
3 de outubro Deixei o leito as 5 horas
porque quero votar.(...) Nas
ruas só se vê cédulas pelo chão. Fico pensando nos desperdicios que
as eleições acarreta no Brasil. Eu achei mais difícil votar do que tirar o
titulo. E havia fila. A Vera começou chorar dizendo que estava com fome. O presidente
da mesa disse-me que nas eleições não pode levar crianças. Respondi que não
tinha com quem deixá-la.
4 de outubro Eu
deixei o leito indisposta porque eu não dormi. O visinho é ademarista roxo e
passou a noite com o radio ligado.
... Passei no Frigorifico
para pegar ossos. Graças as eleições havia muito papel nas ruas. Os radios
estão transmitindo os resultados
eleitoraes. As urnas favorece o senhor Carvalho Pinto.
7 de outubro Morreu
um menino aqui na favela. Tinha dois meses. Se vivesse ia passar fome.
12 de outubro . . . Houve briga aqui na
favela porque o homem que está tomando conta da luz quer 30 cruzeiros por bico.
A conta da agua atinge só 1.100 e ele
quer cobrar 25 de cada barracão.
... Já faz tanto tempo que estou no mundo que eu
estou enjoando de viver. Também, com a fome que eu passo quem é que pode viver
contente?
16 de outubro . . . Vocês já sabem que eu
vou carregar agua todos os dias. Agora eu vou modificar o inicio da narrativa
diurna, isto é, o que ocorreu comigo durante o dia.
17 de outubro Eu fiz
os meus deveres e saí com a Vera. Fui na Dona Julita buscar a cama que ela
deu-me. Ela está mais alegre porque o seu esposo está melhorando. Enquanto eu
estava conversando com a Dona Julita dentro de casa dois meninos carregaram a
cama.
Corri e alcancei os meninos e
tomei a cama. (...) Levei a cama e
fui vender para um judeu que compra moveis usados. Ele examinou a cama e
disse:
– Eu dá 20.
– É pouco! A cama vale mais!
– Eu dá 25.
– É pouco! A cama vale mais!
– Eu dá 30.
– É pouco! A cama vale mais!
– Eu dá 35.
– É pouco! A cama vale mais!
– Eu dá 40. Mais não dá.
Eu já estava começando a ficar
nervosa com o nosso dialogo.
Ele deu 40 e eu fui embora e
parei no portão para observar a Vera que queria mais dinheiro. E dizia:
– Se o senhor não dá mais
dinheiro eu levo a cama.
O judeu deu um tapa no rosto
da Vera e ela começou chorar. Êle disse-me:
– A senhora dá um cruzeiro
para ela, porque eu não tenho trocado.
. . .Depois que eu jantei
fiquei indisposta e fui deitar. Sonhei.
No sonho eu estava alegre.
22 de outubro ... O
Orlando veio cobrar a água — 25 cruzeiros. Ele disse-me que não admite atraso
com ele. Dei o jantar aos filhos, eles foram deitar-se e eu fui escrever. Não podia
escrever socegada com as cenas amorosas que se desenrolavam perto do meu
barracão.
Pensei que iam quebrar a
parede!
Fiquei horrorizada porque a
mulher que estava com o Lalau é casada. Pensei: que mulher suja e ordinária!
Homem por homem, mil vezes o esposo.
Creio que um homem só chega
para uma mulher. Uma mulher que casou-se precisa ser normal.
Esta historia das mulheres
trocar-se de homens como se estivesse trocando de roupa, é muito feio. Agora
uma mulher livre que não tem compromissos pode imitar o baralho, passar de mão
em mão.
23 de outubro ... O
Orlando vivia fazendo biscate. Agora que passou a ser o encarregado da luz e da
água deixou de trabalhar. De manhã êle senta lá na torneira e fica dando
palpites. Eu penso: êle perde, porque a lingua das mulheres da favela é de
amargar. Não é de ossos, mas quebra ossos.
Até o Lacerda perde para as
mulheres da favela!
24 de outubro ... Eu fiz café e mandei o José
Carlos comprar 7 cruzeiros de pão.
Dei-lhe uma cédula de 5 e 2 de aluminio, o dinheiro que
está circulando no paíz. Fiquei nervosa quando contemplei o dinheiro de
aluminio. O dinheiro devia ter mais valor que os géneros. E no entretanto os
géneros tem mais valor que o dinheiro.
Tenho nojo, tenho
pavor
Do dinheiro de
alumínio
O dinheiro sem valor
Dinheiro do Juscelino.
...Eu
descancei, fiz a sopa de lentilha com arroz e carne. Mandei o João comprar
meio quilo de açúcar, o burro comprou arrpz.
Êle passa o dia lendo Gibi e
não presta atenção em nada. Vive pensando que é o homem invisível, Mandraque e
,outras porcarias.
25 de outubro ...A favela hoje está em festa.
Vai tem uma procissão. Os padres enviaram uma imagem de Nossa Senhora. Quem
quer, a imagem permanece 15 dias em cada barracão. Hoje estão rezando o terço
na praça. A procissão vai até o ponto do bonde.
No barraco da Chica estão
dançando.
28 de outubro . . . A I.
separou-se do esposo e está morando com a Zefa. O esposo dela encontrou ela com
o primo. Agora a I. veio comercializar o seu corpo, na presença do esposo.
Penso: a mulher que separa-se do esposo não deve prostituir-se. Deve procurar
um emprego. A prostituição é a derrota moral de uma mulher. É como um edifício
que desaba. Mas tem mulher que não quer ser só de um homem. Quer ser dos
homens. É uma unica dama, dançando quadrilha com varios homens. Sai dos braços
de um, vai para os braços de outro.
A Dona Maria Preta trouxe a
filha para eu desinfetá-la. Ela está com boqueira.
29 de outubro Deixei
o leito as 6 horas. Fiquei nervosa porque não dormi. Passei a noite concertando
o telhado por causa das goteiras. Concertava de um lado, pingava de outro.
Quando chove eu fico quase
louca porque nao posso ir catar papel para arranjar dinheiro.
... Eu sinto muito frio. Costumo
vestir três palitó. E tem pessoa que me vê nas ruas e diz:
– Como você engordou!
Já se foi o tempo que a gente
engordava.
A mulher do Zé Baiano primo do
Ramiro contou-me e pediu-me para eu nao dizer nada a ninguem que o José lhe
expulsou de casa. Que já faz 20 dias que eles nao falam.
Eu disse para ela fazer as pazes,
que o José é muito bom.
30 de outubro ... Saí com a Vera. Notei
anormalidade porque a Policia está nas ruas. Fui conversar com um servidor
municipal. Ele queixou-se que pagou 5 cruzeiros de onibus.
Eu segui. Olhando os paulistas
circular pelas ruas com a fisionomia triste. Nao vi ninguem sorrir. Hoje pode
denominar-se o dia da tristeza.
Eu comecei fazer as contas
quando levar os filhos na cidade quanto eu vou gastar de bonde. 3 filhos e eu,
24 cruzeiros ida e volta. Pensei no arroz a 30 o quilo.
Uma senhora chamou-me para
dar-me papeis. Disse-lhe que devido o aumento da condução a policia estava nas
ruas. Ela ficou triste. Percebi que a noticia do aumento entristece todos. Ela
disse-me:
– Eles gastam na eleição e
depois aumentam qualquer coisa. O Auro
perdeu, aumentou a carne. O Adhemar perdeu, aumentou as passagens. Um
pouquinho de cada um, eles vao recuperando o que gastam. Quem paga as despezas
das eleições é o povo!
31 de outubro Fui
carregar agua. Que bom! Nao tem fila. Porque está chovendo. Vi as mulheres da
favela agitadas e falando. Perguntei o que havia. Disseram que o Orlando Lopes,
o atual dono da luz havia espancado a Zefa. E que ela deu árte e ele foi preso.
Perguntei para o Geraldo se era verdade. Afirmou que sim.
... A Nena disse que o Orlando
bateu na Zefa para valer. Eu fui catar papel. A Vera passou no Frigorifico para
pedir a salchicha. Ganhei 106 cruzeiros. A Vera ganhou 6 cruzeiros, porque ela
entrou num bar para pedir agua e pensaram que ela estava pedindo esmola.
... O povo está dizendo que o
Dr. Adhemar elevou as passagens para vingar do povo porque lhe preteriram nas
urnas.
Quando cheguei em casa os
filhos já estavam em casa. Esquentei a comida. Era pouca. E eles ficaram com
fome.
... Nos bondes que circulam
vai um policial. E nos onius tambem. O povo nao sabe revoltar-se. Deviam ir no
palacio do Ibirapuera (NOTA 4: Gabinete do Prefeito.) e na Assembléia e dar uma surra
nestes politicos alinhavados que nao sabem administrar o país.
Eu estou triste porque nao
tenho nada para comer.
Nao sei como havemos de fazer.
Se a gente trabalha passa fome, se nao trabalha passa fome.
Várias pessoas estão dizendo
que precisamos matar o Dr. Adhemar. Que ele está prejudicando o paiz. Quem
viaja quatro vezes de onibus contribui com 600,00 para a C.M.T.C. (NOTA 5: Companhia Municipal de
Transportes Coletivos.).
Deste geito ninguem mais pode.
... De manhã, quando eu ia
saindo o Orlando e o Joaquim Paraiba vinham voltando da prisão.
1 de novembro ...
Achei um saco de fubá no lixo e trouxe para dar ao porco. Eu já estou
tão habituada com as latas de lixo, que não sei passar por elas sem ver o que
há dentro.
Hoje eu vou catar papel porque
sei que não vou encontrar nada. Tem um velho que circula na minha frente.
Ontem eu li aquela fabula da
rã e a vaca. Tenho a impressão que sou rã. Queria crescer até ficar do tamanho
da vaca.
... Percebi que o povo
continua achando que devemos revoltar contra os preços dos generos e não
atacarmos só a C.M.T.C.. Quem lê o que o Dr. Adhémar disse nos jornais que foi com dor
no coração que assinou o aumento, diz:
– O Adhemar está enganado. Ele não
tem coração.
– Se o custo de vida continuar
subindo até 1960 vamos ter revolução!
2 de novembro
. . . Fui lavar roupas e
permaneci no rio até as sete e meia. A Dorça foi lavar roupas e ficamos conversando
sobre as poucavergonhas que ocorrem aqui na favela. Falamos da Zefa que apanha
todos os dias. Falei das mulheres que não trabalham e estão sempre com
dinheiro. Falamos do namoro do Lalau com a Dona M. E a Dona M. diz que ele
namora é com a Nena. A Nena é boba.
Lavei as roupas de cor
e vim fazer café. Pensei que tinha café.
Não tinha.
... A coisa que eu tenho pavor é de entrar no quartinho onde durmo, porque é
muito apertado. Para eu varrer o quarto preciso desarmar a cama. Eu varro o
quartinho de 15 em 15 dias.
... O almoço ficou pronto e os filhos não vieram almoçar. O João desapareceu.
Percebi que ele foi no cinema. Eu almocei um pouquinho. Peguei um livro para eu
ler. Depois senti frio. Fui sentar no sol. Achei o sol muito quente, fui sentar
na sombra. (...) Conversei com um senhor. Disse-lhe que circula um boato que a favela vai
acabar porque vão fazer avenida. Ele disse que não é pra já. Que a Prefeitura
está sem dinheiro.
...O João chegou do cinema. Dei-lhe uma surra e ele saiu correndo.
3 de novembro . . . Catei uns ferros. Deixei um
pouco no deposito e outro pouco eu trouxe. Quando passei na banca de jornais li
este slogan dos estudantes:
Juscelino esfola!
Adhemar rouba!
Janio mata!
A Camara apoia!
E o povo paga!
. . . Parei na linha
do trem para pegar umas latas porque eu havia deixado perto da gurita e pedi ao
guarda para guardar. O guarda perguntou quanto eu ia receber latas. Respondi
que era 300,00. Que já estou farta de biscates. Ele disse que antes isso do que
nada. Eu disse-lhe que as latas de oleo eram a 70,00 e agora está a 60,00. Ele
disse:
– Em vez de subir, desce.
Disse que a vida está
muito cara. Que até as mulheres estão caras. Que quando ele quer dar uma f.. .
as mulheres quer tanto dinheiro que ele acaba desistindo.
Fingi que não ouvi,
porque eu não falo pornografia. Saí sem agradecê-lo.
Dei um banho nos
filhos. Eles foram deitar-se. E eu fui lavar as louças. Depois fui escrever.
Senti canceira e sono. Fui deitar. Matei umas pulgas que estava circulando na
cama e deitei. E não vi mais nada.
Dormi umas três horas
seguidas. Despertei com a voz do Joaquim Paraíba, que estava reclamando que
arrumou uma namorada que não quer namorar no escuro. Só lhe namora durante o
dia, e a noite perto da luz.
Penso:
– Ele não está com bas intenções
com a namorada.
4 de novembro . . . Fui
catar papel. (...) Quando eu voltava parei numa banca de jornais. Vi um homem chigando os
policiais de burros. No cliché, um policial expancava um velho. O jornal dizia
que era um policial do DOPS (NOTA 6: Departamento
de Ordem Política e Social.). Resolvi tomar o bonde e ir para casa. (...) Fomos falando do Dr. Adhemar, unico nome que está
em evidencia por causa do aumento das conduções. O homem disse-me que os nossos
politicos são carnavalescos.
Eu acho que o Dr. Adhemar
está revoltado. E resolveu ser energico com o povo para demonstrar que ele tem
força para nos castigar.
Eu acho que os espiritos
superiores não se vingam.
. . .Cheguei em casa cançada e
com dor no corpo. Encontrei a Vera na rua. O bendito João, o meu filho manequim,
não presta atenção em nada. O barraco estava aberto e os sapatos espalhados
pelo assoalho. Êle não pois fogo no feijão. (...)
Era 6 e meia quando o João apareceu. Mandei êle acender o fogo. Depois dei-lbe
uma surra. Com uma vara e uma correia. E rasguei-lhe os Gibis desgraçados. Tipo
da leitura que eu detesto.
5 de novembro . . .
Passei no empório, vendi um litro para o senhor Eduardo por 3 cruzeiros para
pagar o onibus. Quando cheguei no ponto de onibus encontrei com o Toninho da
Dona Adelaide. Êle trabalha na Livraria Saraiva. Disse-lhe:
— Pois é, Toninho, os editores
do Brasil não imprime o que escrevo porque sou pobre e não tenho dinheiro para
pagar. Por isso eu vou enviar o meu livro para os Estados Unidos. Êle deu-me
vários endereços de editoras que eu devia procurar.
. . . Vinha pela rua catando
os pedaços de ferro que encontrava. Passei na Dona Julita e pedi comida. Ela
esquentou comida para mim. A Dona Julita deu-me sopa, café e pão. Eu comi lá
na Dona Julita. Era treis horas. Fiquei indisposta. Os moveis girando ao meu
redor, é que o meu organismo não está
habituado com as reconfortantes.
. . . Preparei a sopa para os
filhos. Eles dormiram antes da sopa cosinhar. Quando ficou pronta
despertei-lhes para comer. Jantamos e dormimos. Eu sonhei com a Dona Julita.
Que havia dito para eu trabalhar para ela que ela pagava-me 4mil cruzeiros por mês.
Disse-lhe que êu ia internar os filhos. E levava só a Vera.
Despertei. Não adormeci mais.
Comecei sentir fome. E quem
está com fome não dorme.
Quando Jesus disse para as
mulheres de Jerusalém: — "Não chores por mim. Chorae por vós" — suas
palavras profetisava o governo do Senhor Juscelino. Penado de agruras para o
povo brasileiro. Penado que o pobre há de comer o que encontrar no lixo ou
então dormir com fome.
Você já viu um cão quando quer
segurar a cauda com a boca e fica
rodando sem pegá-la?
É igual o governo do
Juscelino!
6 de novembro ... Quando eu cheguei na Dona
Julita era 8 e meia. Ela deu-me café. A Vera começou dizer que gostava de
residir numa casa igual a da Dona Julita. Ela fez o almoço. E eu almocei. A
Vera comia e dizia:
— Que comida gostosa!
A comida da Dona Julita me
deixa tonta. . . . Findo o serviço ela deu-me sabão, queijo, gordura e arroz.
Aquele arroz agulha. O arroz das pessoas de posses.
8 de novembro . . . Fui fazer compras no japonês. Comprei um quilo e meio de feijão,
2 de arroz e meio de açúcar, 1 sabão. Mandei somar. 100 cruzeiros. O açúcar
aumentou. A palavra da moda, agora, é aumentou. Aumentou!
Isto me faz lembrar esta
quadrinha que o Roque fez e deu-me
para eu incluir no meu repertório poético e dizer que é minha:
Politico quando candidato
Promete que dá aumento
E o povo vê que de fato
Aumenta o seu sofrimento!
. . . Eu fui buscar o
guarda-roupa velho. Quando cheguei para pegar o guarda-roupa, uma jovem que
reside lá auxiliou-me a descer o guarda-roupa e deu-me um colchão.
Eu não conseguia travar o
guarda-roupa no carrinho. O João já estava começando a ficar nervoso. Disse:
— Maldita
hora que eu vim buscar este guarda-roupal O dono da loja de sapatos auxiliou-me
a por o guarda-roupa no carrinho. Caiu
porque o carrinho deslisou-se.
Tinha uns homens da Light trabalhando. Surgiu um e deu-me uma corda.
Comecei a amarrar. Mas não conseguia. Começou afluir pessoas para ver-me. O
João ficou nervoso com os olhares. Eu olhava os empregados da Light e pensava:
no Brasil não tem homens! Se tivesse ageitava isto aqui para mim. Eu devia ter
nascido no Inferno!
Eu puis o colchão dentro do guarda-roupa. Piorou. Os homens da Light
olhavam a minha luta. E eu pensava: para olhar eles prestam. Pensei: eu não vim
ao mundo para esperar auxilios de quem quer que seja. Eu tenho vencido tantas
coisas sosinha, hei de vencer isto aqui! Hei de ageitar este guarda-roupa. Não
estava pensando nos homens da Light. Eu estava suando e sentia o odor do suor.
Assustei quando ouvi uma voz no meu ouvido:
– Deixa, que eu ageito para a senhora.
Pensei: agora vai. Olhei o homem e achei êle bonito. Êle retirou o colchão
de dentro do guarda-roupa e pois no carrinho. Depois pois o guarda-roupa por
cima para não escorregar. Pegou a corda e amarrou. O João ficou contente e
disse:
– Graças ao homem!
...Eu estava chingando o senhor Manoel quando êle chegou. Deu-me boa
noite. Disse-lhe:
– Eu estava te
chingando. O senhor ouviu?
– Não ouvi.
– Eu estava dizendo aos filhos que eu desejava ser
preta.
– E você não é preta?
– Eu sou. Mas eu queria ser destas negras
escandalosas para bater e rasgar as tuas roupas.
... Quando ele passa uns dias sem vir aqui, eu
fico lhe chingando. Falo: quando ele chegar eu quero expancar-lhe
e lhe jogar agua. Quando êle chega eu fico sem ação.
Ele disse-me que quer casar-se comigo. Olho e penso: este homem não serve para mim. Parece um
ator que vai entrar em cena. Eu gosto dos homens que pregam pregos, concertam
algo em casa.
Mas quando eu estou deitada com ele, acho que ele me serve.
... Fiz arroz e puis agua esquentar para eu tomar banho. Pensei nas palavras
da mulher do Policarpo que disse que quando passa perto de mim eu estou fedendo
bacalhau. Disse-lhe que eu trabalho muito{ que havia carregado mais
de 100 quilos de papel. E estava fazendo calor. E o corpo humano não presta.
Quem trabalha como eu tem que feder!
9 de novembro ... Preparei a refeição para os filhos e fui lavar
roupas. Quem estava no rio era a Dorça e uma nortista que dizia que a nora
estava em trabalho de parto. Há treis dias. E não conseguia hospital. Chamaram
a Radio Patrulha para interná-la e ainda não havia dado solução. A velha dizia:
– São Paulo não presta. Se fosse no Norte era só
chamar uma mulher, e pronto.
– Mas a senhora não está no Norte. Precisa
providenciar hospital para a mulher.
O marido vende na feira. Mas não quer gastar com a esposa porque quer ir
para o Norte e está ajuntando dinheiro.
12 de novembro Eu ia sair, mas estou tão desanimada! Lavei as louças, varri o barraco,
arrumei as camas. Fiquei horrorizada com tantas pulgas. Quando eu fui pegar
agua contei para a D. Angelina que eu havia sonhado que tinha comprado um
terreno muito bonito. Mas eu não queria ir residir lá porque era litoral e eu
tinha medo dos filhos cair no mar.
Ela disse-me que só mesmo no sonho é que podemos comprar terrenos. No sonho
eu vias as palmeiras inclinan-do-se para o mar. Que bonito! A coisa mais linda
é o sonho.
Achei graça nas palavras da D.
Angelina, que disse-me a verdade. O povo brasileiro só é feliz quando está
dormindo.
14 de novembro Deixei o
leito às 5 horas e fui pegar agua. Era só homens que estava na torneira.
Ninguem falava. Enchiam as vasilhas e saíam. Pensei: se fossem mulheres. . .
15 de novembro O dia surgiu claro para todos. Porque
hoje não tem fumaça das fabricas para deixar o céu cinzento.
17 de novembro . . . A I. e
a C. estão começando a prostituir-se. Com os jovens de 16 anos. É uma folia.
Mais de 20 homens atrás delas.
Tem um mocinho que mora na Rua do
Porto. É amarelo e magro. Parece um esqueleto ambulante. A mãe lhe obriga a
ficar só na cama, porque ele é doente e cança atôa. Ele sai com a mãe só para pedir esmola, porque o seu aspecto
comove.
Aquele filho amarelo é o seu
ganha pão.
Mas até ele anda atrás de I. e da
C. Apareceu tantos jovens de 15 e 16 anos aqui na favela, que vou dar parte as
autoridades.
... Vi as moças da Fabrica de
Doces, tão limpinhas. A I. e a C. podiam trabalhar. Ainda não tem 18 anos. São
infelizes que iniciam a vida no lodo.
... Hoje eu estou triste. Deus
devia dar uma alma alegre ao poeta.
... A Pitita saiu correndo e o
seu esposo atrás. As crianças olham estas cenas com deleite. A Pitita estava
semi-nua. E as partes que a mulher deve ocultar estava visivel. Ela correu,
parou e pegou uma pedra. Jogou no Joaquim. Ele desviou-se e a pedra pegou na
parede, por cima da cabeça da Teresinha. Pensei: esta nasceu de novo!
A Francisca começou dizendo que o
Joaquim não prestava. Que é homem só para fazer filho. (...) A Leila gritou que
a Pitita estava brigando com o Joaquim porque ele está dormindo com a I.
A I. está sendo disputada na
favela. Ela abandonou o esposo. (...) A Leila numa briga é como gasolina no
fogo. Ela instiga e substitui a aranha com sua teia.
... Quando a Pitita briga, todos
saem para ver. É um espetáculo pornografico. (...) As crianças começaram a
falar que a Pitita havia erguido o vestido. Eu vim para dentro de casa. Eu já
estava deitada e ouvia a voz da Pitita.
A tarde na favela foi de amargar.
E assim as crianças ficaram sabendo que os homens fazem. . . com as mulheres.
Estas coisas ele não olvidam.
Tenho dó destas crianças que vivem no Quarto de Despejo mais imundo que há no
mundo.
20 de novembro ... Olhei o
céu. Parece que vamos ter chuva. Levantei, tomei café e fui varrer o barraco.
Vi as mulheres olhando na direção do rio. Fui ver o que era. Eu estava com umas
cebolas que a Juana do Binidito deu-me porque eu dei-lhe uns tomates. Mandei a
Vera guardar os tomates e fui perguntar as mulheres o que havia no rio.
– É uma criança que não pode sair
do rio.
Fui ver. Pensei: se for criança
eu vou atravessar o Tiete para retirá-la e se for preciso nadar eu entro na
agua.
Corri para ver o que era. Era um
jacá de queijo que flutuava. Voltei e fui escrever.
21 de novembro ... Vi varias
pessoas no barraco da Leila. Fui ver o que havia. Perguntei para a D. Camila o
que houve.
– É a menina que morreu.
– De que foi que morreu a menina?
– Não sei.
... O sono surgiu. Eu deitei.
Despertei com um bate-fundo perto da minha janela. Era a Ida e a Analia. A
briga começou lá na Leila. Elas não respeitam nem a extinta. O Joaquim interviu
pedindo para respeitar o corpo. Elas foram brigar na rua.
... Hoje de manhã eu disse para o
Seu Joaquim Purtuguês que a filha da D. Mariquinha não sabia ler. Ela disse:
–
F... elas aprendem. E aprendem sem professor.
Eu dei uma risada e disse:
–
Purtuguês não presta!
Da minha janela eu vejo a filha
da Leila no seu esquife. O diabo é que há não há respeito no veloório. Parece
até uma festa.
... O luar está maravilhoso. A
noite tepida. Por isso o favelado está agitado. Uns tocam sanfona, outros
cantam. Já rezaram um terço para a filha da Leila.
O esquife é branco. Eu vou
deitar. O barulho é muito, mas eu vou deitar.
Aqui tudo é motivo para farra.
22 de novembro Deixei o
leito as 5 horas e fui carregar agua. Olhei o barraco de Leila. Vi o José do
Pinho no meio das vagabundas. Pensei: um moço tão bonito . . .
No terreiro todos queixavam que o
velorio da filha da Leila foi de amargar. Que andaram a noite toda e não
deixaram ninguem dormir.
... Chegou o carro para levar a
filha da Leila. Ela começou chorar. Assim que a criança saiu a Leila foi beber.
O que eu fico admirada é das
almas da favela. Bebem porque estão alegres. E bebem porque estão tristes.
A bebida aqui é o paliativo. Nas
epocas funestas e nas alegrias.
23 de novembro ... Preparei
uns ferros para ir vender no deposito de ferro velho. Dei duas viagens. Ganhei
178 cruzeiros. Telefonei para as Folhas
para mandar uns reporteres na favela para expulsar uns ciganos que estão
acampados aqui. Eles jogam excrementos na rua. As pessoas que reside perto dos
ciganos estão queixando que eles falam a noite toda. E não deixam ninguem
dormir. Eles são violentos e os
favelados tem medo deles. Mas eu já preveni que comigo a sopa é mais grossa.
Devido as mocinhas ficar nuas, os
vagabundos ficam sentados perto do barracão, observando-as. O diabo é que se
alguém agredi-las os ciganos revoltam. Mas a nudez delas excita. Parece que já
estou vendo um bate-fundo de ciganos com favelado.
Mil vezes os nossos vagabundos do
que os ciganos.
26 de novembro ... Fui pegar
agua. Olhei o local onde os ciganos acamparam. Eles ficaram só treis dias. Mas
foi o bastante para nos aborrecer. Eles são nojentos. O local onde eles
acamparam está sujo e exala mau cheiro. Um odor desconheido.
27 de novembro ... Eu estou
contente com os meus filhos alfabetizados. Compreendem tudo. O José Carlos
disse-me que vai ser um homem distinto e que eu vou tratá-lo de Seu José.
Já tem pretensões: quer residir
em alvenaria.
... Eu fui retirar os papelões.
Ganhei 55 cruzeiros. Quando eu retornava para a favela encontrei com uma
senhora que se queixava porque foi despejada pela Prefeitura.
Como é horrivel ouvir um pobre
lamentando-se. A voz do pobre não tem poesia.
Para reanimá-la eu disse-lhe que
havia lido na Biblia que Deus disse que vai concertar o mundo. Ela ficou alegre
e perguntou-me.
– Quando vai ser isto, Dona
Carolina? Que bom! E eu que já queria me suicidar!
Disse-lhe para ela ter paciencia
e esperar que Jesus Cristo vem ao mundo para julgar os bons e os maus.
– Ah! então eu vou esperar.
Ela sorriu.
... Despedi-me da mulher, que já
estava mais animada. Parei para concertar o saco que deslisava da minha cabeça.
Contemplei a paisagem. Vi as flores roxas. A cor da agrura que está nos
corações dos brasileiros famintos.
28 novembro Fui carregar
agua. Não tinha ninguem. Só eu e a filha do T., a mulher que fica grávida e
ninguem sabe que é o pai de seus filhos. Ela diz que os seus filhos são filhos
de seu pai.
29 de novembro ... Era 11
horas quando eu fui deitar. Ouvi vozes alteradas. Era 2 mulheres brigando. Ouvi
a voz do Lalau. É que ele já saiu da cadeia. Já faz 3 dias que ele estava preso
por causa do pato do Paulo. Acho que o Lalau nunca mais há de querer pato dos
visinhos.
30 de novembro ... Vi um
menino mechendo no pé. Fui ver o que havia. Era um espinho. Retirei um alfinete
do vestido e tirei o espinho do pé do menino. Ele foi mostrar o espinho para o
seu pai.
O menino olhou-me. Que olhar!
Pensei: arranjei mais um amiguinho.
5 de dezembro ... A Leila contou-me que a filha da Dona
D. está presa, porque o seu esposo lhe pegou em adultério com um baiano que tem
dois dentes de ouro.
... Hoje eu estou estreando um
radio. Toquei o radio até as 12. Ouvi os programas de tango. O Orlando ligou a
luz. Agora tenho de pegar 75 cruzeiros por mês, porque ele cobra 25 por bico.
6 de dezembro Deixei o leito
as 4 da manhã. Liguei o radio para ouvir o amanhecer do tango.
... Eu fiquei horrorisada quando
ouvi as crianças comentando que o filho do senhor Joaquim foi na escola embriagado.
É que o menino está com 12 anos.
Eu hoje estou muito triste.
8 de dezembro ... De manhã o
padre veio dizer missa. Ontem ele veio com o carro capela e disse aos favelados
que eles precisam ter filhos. Penso: porque há de ser o pobre quem há de ter
filhos – se filhos de pobre tem que ser operario?
Na minha fraca opinião quem deve
ter filhos são os ricos, que podem dar alvenaria para os filhos. E eles podem
comer o que desejam.
Quando o carro capela vem na
favela surge vários debates sobre religião. As mulheres dizia que o padre
disse-lhes que podem ter filhos e quando precisar de pão podem ir buscar na
igreja.
Para o senhor vigario, os filhos
de pobres criam só com pão. Não vestem e não calçam.
11 de dezembro ... Comecei
queixar para a Dona Maria das Coelhas que o que eu ganho não dá para tratar os
meus filhos. Eles não tem roupa nem o que calçar. E eu não paro um minuto. Cato tudo que se pode vender e a miseria
continua firme ao meu lado.
Ela disse-me que já está com nojo
da vida. Ouvi seus lamentos em silêncio. E disse-lhe:
– Nós já estamos predestinados a
morrer de fome!
13 de dezembro ... A
nortista começou queixar-se que os seus filhos vão voltar para o interior
porque não encontram serviço aqui em São Paulo. Vão colher algodão. Fiquei com
dó da nortista. Eu já colhi algodão. Fiquei com dó da nortista.
Parte IV
14 de dezembro ... De manhã
teve missa. O padre disse para nós não beber, porque o homem que bebe não sabe
o que faz. Que devemos beber limonada e agua. Varias pessoas veio assistir a
missa. Ele disse que sente prazer de estar entre nós.
Mas se o padre residisse entre
nós, havia de expressar de outra forma.
16 de dezembro ... Quando eu
estava conversando com o senhor Venancio presenciei uma cena repugnante. A
mulher daquele mulato que mora na frente do senhor A. namorando o João
Nortista. Aquele que tem dois dentes de ouro.
18 de dezembro ... Eu estava
escrevendo. Ela perguntou-me:
– Dona Carolina, eu estou neste
livro? Deixa eu ver!
– Não. Quem vai ler isto é o
senhor Audálio Dantas, que vai publicá-lo.
– E porque é que eu estou nisto?
– Você está aqui por que naquele
dia que o Armim brigou com você e começou a bater-te, você saiu correndo nua
para a rua.
Ela não gostou e disse-me:
– O que é que a senhora ganha com
isto?
... Resolvi entrar para dentro de
casa. Olhei o céu com suas nuvens negras que estavam prestes a transformar-se
em chuva.
19 de dezembro Amanheci com
dor de barriga e vomitando. Doente e sem ter nada para comer. Eu mandei o João
no ferro velho vender um pouco de estopa e uns ferros.
Ele ganhou 23 cruzeiros. Não dava
nem para fazer uma sopa. (. . .) Que suplicio adoecer aqui na favela! Pensei:
hoje é meu ultimo dia em cima da terra.
... Percebi que havia melhorado.
Sentei na cama e comecei catar pulgas. A idéia de morte já ia se afastando. E
eu comecei a fazer planos para o futuro.
Hoje eu não sai para catar papel.
Seja o que Deus quiser.
20 de dezembro ... Dizem os
velhos que no fim do mundo a vida ia ficar insipida. Creio que é historia,
porque a Natureza continua nos dando de tudo.
Temos as estrelas que brilham.
Temos o sol que nos aquece. As chuvas que cai do alto para nos dar o pão de
cada dia.
... Eu preparava para deitar
quando surgiu a Duca, que pediu-me para eu dar parte do senhor Manoel, porque
ele comprou uma televisão e a televisão captava toda a força eletrica e deixava
a favela sem luz. Equivoco. A televisão não estava ligada. Coisa que nunca vou
fazer é difamar o senhor Manoel. É o homem mais distinto da favela. Ele está
aqui já faz 9 anos. Sai de casa e vai para o trabalho. Não falta ao serviço.
Nunca brigou com ninguem. Nuncca foi preso. Ele é o homem mais bem remunerado
da favela. Trabalha para o Conde Francisco Matarazzo.
24 de dezembro ... Hoje estou com sorte. Tem muitos papeis na rua
(...) As 5 horas comecei vestir-me para eu ir no Centro Espirita Divino Mestre
receber os donativos natalinos. Preparei os filhos e saí. (...) Eu ouvi vozes:
– Estão dando cartões!
Corri para ver. Vi os favelados
rodeando um carro. E o povo correndo para ganhar cartões. No carro estava
apenas o motorista. E o povo pedia:
– Dá um para mim. Dá um para mim!
O motorista dizia:
– Vocês sujam o carro!
Perguntei-lhe:
– O que é que o senhor está
distribuindo?
– Eu vim aqui trazer um homem.
Nem sei o que este povo está pedindo.
– É que na epoca de Natal, quando
vem um automovel aqui, eles pensam que vieram dar presentes.
– Nunca mais hei de vir aqui no
Natal – disse o motorista nos olhando com repugnancia.
Havia tantas pessoas ao redor do
automovel que não pude anotar a placa.
... No centro Espirita a fila já
estava enorme quando nós chegamos. (...) Os 10 filhos de uma nortista estavam
pedindo pão. A Dona Maria Preta deu 15 cruzeiros para ela.ela foi comprar pão.
O senhor Pinheiro, dignissimo
presidente do Centro Espirita, saiu para conversar com os indigentes.(...)
Passou um senhor, parou e nos olhou. E disse perceptivel:
– Será que este povo é deste
mundo?
Eu achei graça e respondi:
– Nós somos feios e mal vestidos,
mas somos deste mundo.
Passei o olhar naquele povo para
ver se apresentava aspecto humano ou aspecto de fantasma. O homem seguiu
sorrindo. E eu fiquei analisando. Quando penetramos para receber os premios, o
meu numero era 90. Eu e os demais ganhamos presentes e generos: roupas, chá
mate, batatas, arroz e feijão. O senhor Pinheiro convidou-me para eu ir no
Centro.
Era 9 e meia quando nós chegamos
no ponto do bonde e fomos ver um presepio que fizeram na garagem que está vaga.
Havia uma placa onde se lia: Entrada gratis. Mas no presepio havia uma bandeja
com cedula de 1 a 100. Quando saí elogiei o presepio. Unica coisa que eu posso
fazer.
Quando cheguei na favela
encontrei a porta aberta. O luar estava maravilhoso.
25 de dezembro ... O João
entrou dizendo que estava com dor de barriga. Percebi que foi por ele ter
comido melancia deturpada. Hoje jogaram um caminhão de melancia perto do rio.
Não sei porque é que estes
comerciantes inconscientes vem jogar seus produtos deteriorados aqui perto da
favela para as crianças ver e comer.
... Na minha opinião os
atacadistas de São Paulo estão se divertindo com o povo igual os Cesar quando
torturava os cristãos. Só que o Cesar da atualidade supera o Cesar do passado.
Os outros era perseguido pela fé. E nós, pela fome!
Naquela época, os que não queriam
morrer deixavam de amar a Cristo.
Mas nós não podemos deixar de
comer.
26 de dezembro ... Aquela
senhora que reside na rua Paulino Guimarães, numero 308 deu uma boneca para a
Vera. Nós iamos passando quando ela chamou a Vera disse-lhe para esperar. A
Vera disse-me:
– Acho que vou ganhar uma boneca
Respondi:
– E eu acho que vamos ganhar pão.
Eu notava a sua anciedade e
curiosidade de saber o que ia ganhar. A senhora saiu do interior da casa com a
boneca.
A Vera disse-me:
– Eu não disse! Eu acertei!
E foi correndo pegar a boneca.
Pegou a boneca e voltou correndo para mostrar-me. Ela agradeceu e disse que as
meninas da favela iam ficar com inveja. E que ia rezar todos os dias para a
mulher ser feliz. Que ela vai ensinar a boneca a rezar. E vai levá-la na missa
para ela rezar para a mulher ir para o céu e não ter doença que dói muito.
27 de dezembro ... Eu cancei
de escrever, adormeci. Despertei com uma voz chamando Dona Maria. Fiquei
quieta, porque não sou Maria. A voz dizia:
– Ela disse que mora no numero 9.
Levantei de mau humor e fui
atender. Era o senhor Dario. Um senhor que eu fiquei conhecendo na eleição. Eu
mandei o senhor Dario entrar. Mas fiquei com vergonha. O vaso noturno estava
cheio.
... O senhor Dario ficou
horrorizado com a primitividade em que eu vivo. Ele olhava tudo com assombro.
Mas ele deve aprender que a favela é o quarto de despejo de São Paulo. E que eu
sou uma despejada.
28 de dezembro ... Eu acendi
o fogo puis água para esquentar e comecei lavar as louças e vasculhar as
paredes. Encontrei um rato morto. Já faz dias que eu ando atrás dele. Armei a
ratoeira. Mas quem matou ele foi uma gata preta. Ela é do senhor Antonio
Sapateiro.
O gato é um sabio. Não tem amor
profundo e não deixa ninguém escravisá-lo. E quando vai embora não retorna,
provando que tem opinião.
Se faço esta narração do gato é
porque fiquei contente dela ter matado o rato que estava estragando os meus
livros.
29 de dezembro Saí com o
João e a Vera e o José Carlos. O João levou o radio para concertar. Quando eu
ia na rua Pedro Vicente, o guarda do deposito chamou-me e disse-me para eu ir
buscar uns sacos de papel que estavam perto do rio.
Agradeci e fui ver os sacos. Eram
sacos de arroz que estavam nos armazens e apodreceram. Mandaram jogar fora.
Fiquei horrorizada vendo o arroz podre. Contemplei as traças que circulavam, as
baratas e os ratos que corriam de um lado para outro.
Pensei: porque o homem branco é
tão perverso assim? Ele tem dinheiro, compra e põe nos armazens. Fica brincando
com o povo igual gato com rato.
30 de dezembro ... Quando eu
fui lavar as roupas encontrei com algumas mulheres que estavam comentando a
coragem da Maria, companheira do baiano. Que se separaram e ela foi viver com
outro baiano, seu visinho.
A língua das mulheres é um pavio.
Fica incendiado.
31 de dezembro ... Eu passei
a tarde escrevendo. Os meus filhos estavam jogando bola perto dos barracões. Os
visinhos começaram a reclamar. Quando é os filhos deles que brinca eu não digo
nada. Eu não implico com as crianças, porque eu não tenho vidraça e a bola não
estraga as paredes de tabuas.
... O José Carlos e o Joao
estavam jogando bola. A bola do Tonico. A bola caiu no quintal do Vitor. E a
mulher do Vitor furou a bola do menino. E os meninos começaram a chingar. Ele
pegou um revolver e correu atrás dos meninos.
E se o revolver disparasse!
... Eu não vou deitar. Quero
ouvir a corrida de São Silvestre. Eu fui na casa de um cigano que reside aqui.
Condoeu-me vê-los dormindo no solo. Disse-lhe para vir no meu barracão a noite
que eu ia dar-lhe duas camas. Se ele fosse durante o dia as mulheres iam
transmitindo a novidade, porque aqui tudo é novidade.
Quando a noite surgiu, ele veio.
Disse que quer estabelecer, porque quer por os filhos na escola. Que ele é
viuvo e gosta muito de mim. Se eu quero viver ou casar com ele.
Abraçou-me e beijou-me. Contemplei
a sua boca adornada de ouro e platina. Trocamos presentes. Eu dei-lhe doces e
roupas para os seus filhos e ele deu-me pimenta e perfumes. A nossa palestra
foi sobre arte e musica.
Disse-me que se eu casar com ele
que retira-me da favela. Disse-lhe que não me adapto a andar nas caravanas. Ele
disse-me que é poetica a existencia andarilha.
Ele disse-me que o amor de cigano
é imenso igual o mar. É quente igual o sol.
Era só o que me faltava. Depois
de velha virar cigana. Entre eu e o cigano existe uma atração espiritual. Ele
não queria sair do meu barraco. E se eu pudesse não lhe deixava sair.
Convidei-lhe para vir ouvir o radio. Ele
perguntou-me se sou sozinha. Respondi-lhe que eu tenho uma vida confusa igual
um quebra-cabeça. Ele gosta de ler. Dei-lhe livros para ele ler.
Fui ver o aspecto do barracão.
Ficou mais agradável depois que ele armou as camas. O Joao foi chamar-me,
dizendo que eu estava demorando.
A favela está agitada. Os
favelados demonstram jubilo porque findaram um ano de vida.
Hoje uma nortista foi para o
hospital ter filhos e a criança nasce morta. Ela está tomando soro. A sua mãe
está chorando porque ela é filha unica.
Tem baile na casa do Vitor.
1 de janeiro de 1959 Deixei
o leito as 4 horas e fui carregar agua. Fui lavar as roupas. Não fiz almoço.
Não tem arroz. A tarde vou fazer feijão com macarrão. (...) Os filhos não
comeram nada. Eu vou deitar porque estou com sono. Era 9 horas, o João
despertou-me para abrir a porta. Hoje eu estou triste.
4 de dezembro ... Antigamente
eu cantava. Agora deixei de cantar, porque a alegria afastou-se e deu lugar a
tristeza que envelhece o coração. Todos os dias, aparece um pobre coitado aqui,
na favela, encosta num parente e vão vivendo. O Ireno é um coitado que está com
anemia. Procura a esposa. A esposa não lhe quer. (...) Ele disse-me que a sua
sogra instiga a esposa contra ele. Agora ele está na casa do irmão. Ele foi
passar uns dias na casa da irmã. Retornou-se. Disse-me que lhe jogavam
indiretas por causa da comida.
O Ireno disse que já está descontente
da via. Porque a vida com saúde já é tão pungente.
5 de janeiro ... Está
chovendo. Fiquei quase louca com as goteiras nas camas, porque o telhado é
coberto com papelões e os papelões já apodreceram. As águas estão aumentando e
invadindo os quintais dos favelados.
6 de janeiro Deixei o leito
as 4 horas, liguei o radio e fui carregar agua. Que suplicio entrar na agua de
manhã. E eu que sou frienta! Mas a vida é assim mesmo. Os homens estão saindo
para o trabalhp. Levam as meias e os sapatos nas mãos. As mães prendem as
crianças em casa. Elas ficam ansiosas para ir brincar na agua. As pessoas de
espirito jocoso dizem que a favela é a cidade nautica. Outros dizem que é a
Veneza Paulista.
... Estava escrevendo quando o
filho do cigano veio dizer-me que o seu pai estava chamando-me. Fui ver o que
ele queria. Começou queixar-se que encontra dificuldades para viver aqui em São
Paulo. Sai para procurar emprego e não encontra.
Disse que vai voltar para o Rio,
porque lá e´melhor para viver.eu disse-lhe que aqui ganha-se mais dinheiro.
– No Rio ganha mais – afirmou –
Lá eu benzia as crianças, vendia carne e ganhava muito dinheiro.
Percebi que o cigano quando
conversa com uma pessoa, fala horas e horas. Até a pessoa oferecer dinheiro.
Não é vantagem ter amisade com cigano.
... Quando eu ia sair, ele
disse-me para eu ficar. Saí e fui no emporio. Comprei arroz, café e sabão.
Depois fui no Açougue Bom Jardim comprar carne. Cheguei no açougue, a caixa
olhou-me com olhar descontente.
– Tem banha?
– Não tem.
– Tem carne?
– Não tem.
Entrou um japonês e perguntou:
– Tem banha?
Ela esperou eu sair para
dizer-lhe:
– Tem.
Voltei para a favela furiosa.
Então o dinheiro do favelado não tem valor? Pensei: hoje eu vou escrever e vou
chingar a caixa desgraçada do Açougue Bom Jardim.
Ordinaria!
7 de janeiro ... Hoje eu fiz
arroz e feijão e fritei ovos. Que alegria! Ao escrever isto vão pensar que no
Brasil não há o que comer. Nós temos. Só que os preços nos impossibilita de
adquirir. Temos bacalhau nas vendas que ficam anos e anos a espera de
compradores. As moscas sujam o bacalhau. Então o bacalhau apodrece e os
atacadistas jogam no lixo, e jogam creolina para o pobre não catar e comer. Os
meus filhos nunca comeu bacalhau. Eles pedem:
– Compra, mamãe!
Mas comprar como! A 180 o quilo.
Espero, se Deus ajudar-me, antes deu morrer hei de comprar bacalhau para eles.
8 de janeiro ... Encontrei
com o motorista que veio despejar a serragem aqui na favela. Convidou-me para
entrar no caminhão. Motorista loiro perguntou-me se aqui na favela é facil
arranjar mulher. E se ele podia ir no meu barracão. O motorista disse-me que
ele ainda estava em forma. O ajudante dizia que o motorista já havia
aposentado.
Despedi do motorista e voltei
para a favela. Acendi o fogo, lavei as mãos e comecei fazer comida para os
filhos.
10 de janeiro ... O senhor
Manoel veio. Era 8 horas. Perguntou-me se eu ainda converso com o cigano.
Respondi que sim. Que ele tem terreno em Osasco e que se acabar a favela e eu
não tiver onde ir, poderei ir para o seu terreno. Que ele admira a minha
disposição e se pudesse vivia ao meu lado.
O senhor Manoel zangou-se e
disse-me que não retorna mais. Que eu posso ficar com o cigano.
O que eu admiro no cigano é a
calma e a compreensão. Coisa que o senhor Manoel não possue. (. . . ) O senhor
Manoel disse-me que não aparece. Vamos ver.
11 de janeiro ... Não estou gostando do meu estado espiritual. Não
gosto da minha mente inquieta. O cigano está perturbando-me. Mas eu vou dominar
esta simpatia. Já percebi que ele quando me vê fica alegre. E eu tambem. Eu
tenho a impressão que eu sou um pé de sapato e que só agora é que encontrei o
outro pé.
Ouvi falar varias coisas dos
ciganos. E ele tem as más qualidades que propalam. Parece que esse cigano quer
hospedar-se no meu coração.
No inicio receei a sua amisade. E
agora, se ela medrar para mim será um prazer. Se regredir, eu vou sofrer. Se eu
pudesse ligar-me a ele!
Ele tem dois filhos. O menino
acompanha-me sempre. Se eu vou lavar roupas, ele vai comigo, senta ao meu lado.
Os meninos da favela tem inveja quando me vê agradando o menino. Agradando o
filho, hei de conseguir o pai.
O nome do cigano é Raimundo.
Nasceu na capital da Bahia. Mas não usa peixeira. Ele parece o Castro Alves,
suas sobrancelhas unem-se.
12 de janeiro ... Fiz a janta. E dei jantar as crianças. A Rosalina
surgiu. Veio buscar um pouco de feijão. Eu dei.
O senhor Raimundo chegou. Veio
chamar os filhos. Olhou as crianças jantando. Eu lhe ofereci jantar. Ele não
quis. Pegou uma sardinha e perguntou se tinha pimenta. Não ponho pimenta na
comida por causa das crianças.
Pensei: se eu estivesse sozinha
dava-lhe um abraço. Que emoção eu sentia vendo-o ao meu lado. Pensei: se algum
dia eu for exilada e este homem indo na minha companhia, ele há de suavizar o
castigo.
Mandei a Rosalina comer sardinha.
Dei-lhe o feijão. O Raimundo disse-me que vai embora para a sua casa. E se um
dia a favela acabar de eu procurá-lo. Fez o mesmo convite a Rosalina. Eu não
apreciei. Não foi egoísmo. Foi ciúme. Ele saiu e eu fiquei pensando. Ele não
estaciona. É o seu sangue cigano. Pensei: se algum dia este homem for meu, hei
de prendê-lo ao meu lado. Quero apresentar-lhe o mundo de outra forma.
14 de janeiro ... Circulei pelas ruas. Fui na Dona Julia. Fui na
Cruz Azul receber o dinheiro das latas. Cheguei em casa antes da chuva. O
senhor Raimundo mandou sua filha chamar-me. Troquei-me e fui atendê-lo. Ele
disse-me que vai para Volta Redonda. Creio que vou sentir saudades. (. . .)
Despedi-me dele dizendo que precisava escrever e que não podia demorar.
15 de janeiro ... Deixei o leito as 4 horas e fui carregar agua.
Liguei o radio para ouvir o programa de tango.
... O senhor Manoel disse que não
vinha mais e apareceu. Ele penetrou na água para penetrar até o meu barracão.
Resfriou-se.
Hoje eu estou contente. Ganhei
dinheiro. Contei até 300! Hoje eu vou cpmparar carne. Atualmente quando o pobre
compra a carne fica rindo atoa.
16 de janeiro ... Fui no Correio retirar os cadernos que voltaram
dos Estados Unidos. (...) Cheguei na favela. Triste como se tivessem mutilado
os meus membros. O The Reader Digest
devolvia os originais. A pior bofetada para quem escreve é a devolução de sua
obra.
Para dissipar a tristeza que
estava arroxeando a minha alma, eu fui falar com o cigano. Peguei os cadernos e
o tinteiro e fui lá. Disse-lhe que havia retirado os originais do Correio e
estava com vontade de queimar os cadernos.
Ele começou a citar as suas
aventuras. Disse que vai para Volta Redonda. E vai ficar na casa da jovem de 14
anos que está com ele. Se a menina saía para brincar, ele ia procurá-la,
olhando-lhe com cuidado. Eu não apreciava os seus olhares com a jovem. Pensei:
o que Serpa que ele quer com essa jovem?
Os meus filhos entravam no
barracão. Ele estava deitado no assoalho. Eu perguntei se usava peixeira.
– Não. Prefiro um bom revolver
como este.
Mostrou-me um revolver 32. Eu não
simpatiso com revolver. Deu o revolver ao João para segurar. Disse-lhe:
– Você é homem. E o homem precisa
aprender lidar com essas coisas.
Recomendou-lhe para não dizer
nada a ninguem, que ele não quer que o povo da favela saiba que ele tem
revolver.
– Eu mostro para a sua mãe porque
ela gosta de mim. E mulher quando gosta de um homem não lhe denuncia. Quando eu
era soldado eu comprei este revolver.
– O senhor já foi soldado?
– Já. Na Bahia. Deixei a farda
porque ganhava muito pouco.
Mostrou-me o seu retrato fardado.
Quando ia levantando-me para sair, ele dizia:
– É cedo!
Ele mandou fazer café. A mocinha
disse que não tinha açúcar. Eu mandei o João buscar açucar e manteiga. Ele
mandou o seu filho comprar 6 cruzeiros de pão. Disse:
– Eu nunca comi sem carne. Nunca
comi pão sem manteiga. E aqui neste barracão eu comi. Este barracão deu-me
peso.
O seu filho retornou-se com o
pão. O José Carlos entrou e começou a brigar com o seu filho. Ele disse para
eles não brigar, que todos somos irmãos. O José Carlos protestou-se:
– Eu não sou irmão dele não!
– Vocês são irmãos por parte de
Adão e Eva.
Ele segurou o José Carlos nos
braços. Obrigando a deitar-se ao seu lado no assoalho. O José Carlos desvencilhou-se
e saiu para a rua.
Eu puis o olhar no caderno e
comecei a escrever. Quando ergui a cabeça o seu olhar estava pousado no rosto
da mocinha. Não gostei do seu olhar histerico.
... O meu pensamento começou a
desvendar a sordidez do cigano. Ele tira proveito da sua beleza. Sabe que as
mulheres se ilude com rostos bonitos. Ele atrai as mocinhas dizendo que casa
com elas. Satisfaz seus desejos e depois manda elas ir embora. (...) agora eu
compreendia os seus olhares com a mocinha. Isto me serve de advertencia. Nunca
hei de deixar a Vera na casa de quem quer que seja.
Olhei o rosto do cigano. O rosto
bonito. Mas fiquei com nojo. Era um rosto de anjo com alma de diabo. (...) Vim
para o meu barraco. Eu estava pondo os cadernos em cima da mesa, quando senti
que alguem me pegava pelas costas. Era o cigano que me abraçava. Beijou-me na
boca.os seus braços me apertavam tanto. Disse-me:
– Eu vou-me embora. Deixo as
minhas roupas. Você lave-as para mim. Quando eu voltar dou-te uma maquina de
costura. Eu não faço conta de dinheiro. Sei que você vai pensar em mim e sei
que você vai sentir falta de mim. Sei que vou ser hospede do teu coração. E
você ainda vai ter oportunidade de dormir nos meus braços.
Enquanto ele me abraçava, eu
pensava: este diabo devia estar na cadeia. Eu sentei na cama, ele sentou-se ao
meu lado. Eu fechei a janela e continuamos beijando-nos. O meu carinho
representava interesse para descobrir suas atividades. Ele disse-me:
– Eu venho dormir aqui. Nós dois
dormimos nesta cama e a minha irmã dorme no quartinho.
– Eu não durmo com ninguem perto
dos meus filhos.
Ele olhou-me e disse-me:
– Você é boba. As crianças quando
deitam dormem logo.
Ele saiu. Estava
17 de janeiro Deixei o leito as 4 horas, quando ouvi o radio do
visinho tocando. Comecei escrever. Liguei o radio para ouvir o amanhecer do
tango. Despertei pensando no cigano, que é pior do que o negro. Não aconselho
ninguém fazer amizade com eles.
Acendi o fogo, lavei as louças e
fui carregar agua. (...) encontrei com o senhor Adelino, perguntei pelo cigano.
– Ele brigou com o meu cunhado.
Ele dizia que é baiano e o meu cunhado respondia: – Quem é baiano sou eu!
... Eu fui na Dona Julita. Ela
deu-me comida, eu esquentei e comi. Acabei de comer, fiquei triste. É que a
comida de lá é muito forte. Sopa, carne e outras iguarias. Quando o pobre come
uma comida forte, dá tontura.
A Dona Julita disse-me que eu
estava triste por causa do cigano.
20 de janeiro Passei o dia na cama. Vomitei bilis e melhorei um
pouco. Fui carregar agua. O João ficou contente. Perguntou-me se estou melhor.
(...) Fiquei com tontura, deitei novamente.
... Os filhos estão com receio de
eu morrer. Não me deixam sozinha. Quando um sai, outro vem vigiar-me. Dizem:
– Eu quero ficar perto da
senhora, porque quando a morte chegar eu dou uma porretada nela.
Eles estão tão comportados. Ficam
confabulando:
– Se ela morrer nós vamos para o
Juiz.[1]
O José Carlos perguntou-me se a
gente vê a morte chegar. A Vera me mandou cantar.
... O José Carlos foi na feira
catar qualquer coisa. Catou milho, tomates e beringelas. Eu almocei, fiquei
mais disposta. Quando eu dou um gemido os filhos choram com medo do Juiz. O
José Carlos disse-me:
– Sabe mamãe, quando a morte
chegar eu vou pedir para ela deixa nós crescer e depois levar a senhora.
... Para tranquilizá-los eu disse
que não ia morrer mais. Ficaram alegres e foram brincar. O senhor Manoel
chegou. Veio ver se eu melhorei. Fiquei contente com a visita.
15 de fevereiro Hoje eu estou mais animada. Estou rindo. Achando
graça do sururu que houve aqui na favela. Esta noite a Leila começou insultar a
baiano senhor Valdomiro. Chingou até as 2 horas. Ele resolveu espancá-la. Foi
no seu barracão, arrebentou a porta. Quando a Leila foi saltar, prendeu um pé
no peito da janela.
... Hoje o tal Orlando Lopes veio
cobrar a luz. Quer cobrar ferro, 25 cruzeiros. Eu disse-lhe que não passo
roupas. Ele disse que sabe que eu tenho ferro. Que vai ligar o fio de chumbo na
luz e se eu ligar o ferro a luz queima e ele não liga mais. Disse que ligou a
luz para mim e não cobrou deposito.
– Mas o deposito foi abolido
desde 1948.
Ele disse que podia cobrar
deposito porque a Light deu-lhe plenos poderes. Que ele pode cobrar o que
quiser dos favelados.
16 de fevereiro ... Quando eu dirigia-me para casa vi varias
pessoas olhando na mesma direção. Pensei: é briga! Corri para ver o que era.
Era o Arnaldo e o baiano. O Arnaldo apanhava igual uma criança. Interferi e
procurei separá-los. A Juana do Binidito Onça veio ajudar-me. Varios homens
olhavam e ninguem interferia. O baiano deu duas cacetadas no Arnaldo.
... Surgiu o Armim, que disse que
ia matar o baiano. Tentei impedi-lo, segurando-lhe o braço. Ele deu-me um
empurrão. Eu deixei ele ir, mas gritava:
– Não vai que o baiano te mata!
Resolvi chamar a Policia. Saí
correndo. Creio que corria mais depressa que o Manoel Faria. Cheguei na 12ª
Delegacia gritando:
– Briga na favela! Estão brigando
a foice!
... Eu estava com nojo de
retornar a favela. Mas precisava voltar, porque havia deixado os meus filhos.
Quando eu descia para o Inferno,
as mulheres dizia:
– A Policia já desceu.
Quando cheguei na favela o povo
me olhava. A Dona Sebastiana chingava. Estava embriagada. Dizia que ela
degolava o baiano. Eu dizia para ela não chegar, que ela ia morrer. Ela começou
a chingar-me:
– Negra ordinaria! Você não é
advogada, não é reporter e se mete em tudo!
O povo gritava. O baiano fugiu.
... Surgiu o Antonio, vulgo
Bonitao. Pediu-me se eu tinha uma calça para emprestar-lhe, porque ele havia
molhado quando saiu correndo atrás do baiano. (...) Comecei a procurar a calça
para o Bonitão. Dei-lhe a calça e saí. Fui no barraco do Arnaldo perguntar se
ele já havia retornado da Central, porque ele e o Armim havia ido na
Assistência.
23 de fevereiro ... Na rua o povo perguntava o que houve na favela.
Eu explicava (...) Eu estava impaciente porque não sabia o paradeiro do baiano.
Eu queria que ele se entregasse a Policia. Quando cheguei na favela os
comentarios ferviam. O povo dizia que o Armim tinha morrido.
... Fui na Estação do Norte. O
baiano surgiu. Perguntou-me pela sua esposa, disse-lhe que estava comigo. Que
ele podia ir para a favela que ninguem ia lhe fazer mal. Ele disse-me que
estava sem comer. Dei-lhe 25 cruzeiros. Perguntou se o Armim tinha morrido.
– Não. Está em Pirituba.
Ele disse pesaroso:
– Ah! Eu não presto. Está se
vendo que eu não faço o serviço completo. Esta historia de machucar só e não
matar logo, só serve para arranjar inimigo. Eu não conheço o homem que eu dei a
facada. Eu não quero ficar lá porque ele há de querer me matar e a Policia há
de querer me prender.
– Mas você tem de prestar
declarações na Policia. Se você for preso e eu estiver perto, hei de
favorecer-te.
29 de abril Hoje eu estou disposta. O que me entristece é o
suicídio do senhor Tomás. Coitado. Suicidou-se porque cansou de sofrer com o
custo de vida.
Quando eu encontro algo no lixo
que eu posso comer, eu como. Eu não tenho coragem de suicidar-me. E não posso
morrer de fome.
Eu parei de escrever o Diario
porque fiquei desiludida. E por falta de tempo.
1 de maio Deixei o leito as 4 horas. Lavei as louças e fui carregar
agua. Não havia fila. Não tenho radio, não vou ouvir o desfile. (...) Hoje é o
Dia do Trabalho.
2 de maio ... Ontem eu comprei açucar e bananas. Os meus filhos
comeram banana com açucar, porque não tinha gordura para fazer comida. Pensei
no senhor Tomás que suicidou-se. Mas se os pobres do Brasil resolver
suicidar-se porque estão passando fome, não ficaria nenhum vivo.
3 de maio Hoje é domingo. Eu vou passar o dia em casa. Não tenho
nada para comer. Hoje eu estou nervosa, desorientada e triste. Tem um português
que quer morar comigo.mas eu não preciso de homem. Eu já lhe supliquei para não
vir aborrecer-me.
... Hoje o Frei veio rezar a
missa na favela. Ele pois nome na favela de Bairro do Rosario. Vem varias
pessoas ouvir a missa. No sermão o padre pede ao povo para não roubar.
... O senhor Manoel chegou e
começamos a conversar. Falei de uma menina de um ano e meio que não pode ver
ninguem mover a boca, que pergunta:
– O que é que você está comendo?
É a ultima filha do Binidito
Onça. Percebi que a menina vai ser inteligente.
4 de maio Deixei o leito as 6 horas, porque o senhor Manoel quando
dorme aqui não deixa eu levantar cedo.
... Eu não nasci ambiciosa.
Recordei este trecho da Biblia: “Não acumulei tesouros, porque lá estará o teu
coração.”
Sempre ouvi dizer que o rico não
tranquilidade de espírito. Mas o pobre tambem não tem, porque luta para
arranjar dinheiro para comer.
5 de maio Escrevi atpe as 2 horas. Depois fui carregar água.enchi a
barrica e as latas. Fiz uma trempre de tropeiro e puis água a ferver para pelar
o porco. Comecei pensar no que ia preparar: chouriço, lombo assado e couro de
porco no feijão. Fiquei contente. Eu ia comer carne, na realidade. Comecei
cantar, cantei.
... Fiquei pensando: quanto tempo
eu não como carne de porco. Fui ver se o Sr Manoel estava em casa para matar o
porco. Não estava. Fiquei nervosa. (...) Chegou o irmão do senhor Manoel, dono
do porco. Vinha buscar a sua parte. Eu engordei o porco a meia. (...) encontrei
com o Orlando Lopes. Pedi se ele podia matar o porco para mim. Disse que sim.
Eu voltei alegre.
O Orlando surgiu. Foi até o
chiqueiro, olhou o porco. Assim que o porco lhe viu, deu um ronco. Ficou
agitado. O Orlando amarrou-lhe uma corda no pé. Retiraram o porco para fora. O
Orlando deu-lhe uma punhalada. Vendo o sangue correr, peguei uma bacia para
aproveitá-lo para fazer chouriço. Contemplava o extertor do porco, que não
queria exalar o último suspiro. O Orlando deu-lhe outra facada. Esperamos ele
morrer. Os minutos passavam.
Eles pelaram quando abriram o
porco eu fiquei contente. A criançada invadiu o quintal. As mulheres surgiram
dizendo que queriam um pedaço. O Chiclé queira as tripas.
– Eu não vou vender nem dar. Eu
engordei este porco para os meus filhos.
Eles protestavam. Surgiu a Maria
mãe da Analia, pediu se eu podia vender um pedaço de toucinho.
– Não vou vender. Quando você
engordou e matou o teu porco, eu não fui aborrecer-te.
Ela começou dizer que queria só o
toucinho. Perpassei o olhar no povo que fitava o toucinho igual a raposa quando
fita uma galinha. Pensei: e se eles invadir o quintal? Resolvi levar o toucinho
para dentro da casa o mais depressa possível. Fitei as tabuas do barraco, que
já estão podres. Se eles invadir, adeus barraco.
Juro que fiquei com medo dos
favelados.
A Vera não foi no parque porque
queria ver matar o porco.
Os filhos voltaram da escola e
perguntaram:
– Mamãe, a senhora matou o porco?
– Matei.
– O Ninho disse que foi 3 facadas
e 2 pauladas.
Os meus sorriam. Eu também. Dei
uns pedaços para o Orlando e para o senhor Antonio Sapateiro. Fiz bifes para os
filhos. A carne estava em cima da mesa. Cobri com um pano. O João disse:
– Parece uma pessoa morta.
Eu disse:
– Eu vou lavar a barrigada e você
não sai daqui por causa dos gatos..
A Vera acompanhou-me. Eu fui
lavar na lagoa. O José Carlos surgiu, ensinei-lhe a virar as tripas. A Vera
sorria vendo a agua circular dentro da tripa do porco. O José Carlos perguntava
se o nosso corpo é igual o corpo do porco. Afirmei que o interior do porco é
igual ao do homem.
– Então o porco já foi homem?
– Não sei.
... Voltei para casa porque
estava cançada. Percebi que a Maria estava com inveja por eu ter matado o
porco. A Vera queria jantar. Fiz arroz e ela comeu com carne.o João moeu o
toicinho. Eu puis para fritar.
... O João adormeceu. Fiquei
olhando seus pés sujos que estavam pendendo da cama. Lavei os meus braços e o
meu rosto que estava gorduroso. Escovei os dentes e fui deitar. Era 2 horas da
manhã.
6 de maio ... As 9 e meia o reporter surgiu. Bradei:
– O senhor disse que estaria aqui
as 9 e meia e não atrasou-se!
Disse-lhe que varias pessoas
queriam vê-lo, porque apreciam as suas reportagens. (...) Entramos num taxi. A
Vera estava contente porque estava de carro. Descemos no Largo do Arouche e o
repórter começou a fotografar-me. Levou-me no prédio da Academia Paulista de
Letras. Eu sentei na porta e puis o saco de papel a esquerda. O porteiro
apareceu e disse para eu sair da porta. (. . .) O porteiro pegou o meu saco de
catar papel, o saco que para mim tem um valor inestimavel, porque é por seu
intermedio que eu ganho o pão de cada dia. O repórter apareceu e disse que foi
ele quem mandou eu sentar no degrau. O porteiro deisse que não tinha permisso
para deixar que quem quer que fosse sentar-se na porta do predio.
... Fomos na Rua 7 de Abril
e o repórter comprou uma boneca para a
Vera. (...) Eu disse aos balconistas que escrevi um diário que vai ser
divulgado no “O Cruzeiro”,
7 de maio ... Lavei todas as roupas. Jurei nunca mais matar porco
na favela. Eu estou tão nervosa que recordei o meu proverbio: não há coisa pior na vida do que a propria
vida.
Favela, sucursal do Inferno, ou o
proprio Inferno.
Para o jantar fiz feijão, arroz e
carne. A Vera está tão contente porque temos carne! Quando as crianças me vê, pedem:
– Carolina, me dá carne!
Cães e gatos rondam o meu
barraco. Eu estou cançada. Vou deitar. Adormeci. Despertei com o Adalberto, que
está ebrio. Batia no barraco e pedia:
– Carolina, me dá um pedaço de
carne de porco!
Que odio! E eu com tanto sono! Fiquei
ouvindo ele cantar. Depois adormeci novamente. Despertei com algo que passava
por cima das cobertas. Acendi a luz. Era um gato. Não mais deitei. Fiquei
escrevendo até o raiar do dia. Quando ouvi aquele home que passa dizendo:
– Olha o pão doce!
8 de maio ... Fiz arroz e lombo de porco, porque não tenho feijão.
Tomei banho e trocava-me para ir na cidade. Quando eu ia saindo a Vera
penetrou-se e disse que não tinha expediente no Parque.
Antes de sair recordei que devia
dar comida para a cachorrinha. Olhei ela que estava deitada. Dei-lhe um pedaço
de carne e tentei despertá-la. Ela estava morta.
Morreu de tanto comer carne.
... Fui no Juiz. Receber o
dinheiro que o pai da Vera me dá por intermédio do Juizado. (...) O advogado
não quiz me dar a ficha.
– Sem a ficha eu não atendo!
E bateu a porta no meu rosto. Fui
falar com o advogado que o Dr. Walter não queria atender-me sem a ficha. Ele
mandou um guarda acompanhar-me e disse-me:
– Muito bem, Carolina! Põe todo
mundo no Diario.
Acompanhei o guarda, que disse
para o Dr. Walter Aymberê que devia atender-me sem a ficha.
– Não atendo! Se não trazer a
ficha vou falar com o advogado chefe.
A Vera assustou-se e disse:
– Que homem! Porque é que a gente
precisa de advogado, mamãe?
Eu disse para o guarda deixar. Eu
vou-me embora. O Dr. Walter já está no meu Diario. Ele é muito grosseiro.
... Fui na Tesouraria para
receber o dinheiro. Quando chegou a minha vez não encontrei o dinheiro. A Vera
queria comprar um vestido. Eu disse que o seu pai não havia levado o dinheiro.
Ela ficou triste e disse:
– Mamãe, o meu pai não presta.
10 de maio Eu não dormi porque o visinho tocou o radio toda a
noite. E a L. fez um fuá dos diabos. Ela estava dormindo com o Valdemar quando
o Arnaldo chegou. Era 2 horas. O Arnaldo dizia:
– Vai embora Valdemar! A negra é
minha!
O Valdemar respondia:
– A negra é nossa. Eu cheguei
primeiro.
12 de maio ... Eu fui na dona Julita e ela deu-me café e arroz.
Quando eu retornava encontrei com a Dona Maria, aquela que cata papel na
fabrica de pudim. Ela disse-me que roubaram-lhe um saco de papel. Fiquei com
dó. Encontrei com o Capitão. Perguntei-lhe porque havia abandonado o seu lar.
Ele disse-me com voz triste:
– Sabe, Carolina, eu não
pretendia deixar o meu lar. Mas a ingratidão de minha esposa obrigou-me a tomar
esta decisão.
E contou-me o motivo. Eu
disse-lhe:
– Ela não fez bom negocio
trocando-te por outro.
Ele disse-me:
– Se eu continuasse no meu lar,
um dia ou outro eu tinha que matar aquele canalha.
Eu acho que aquele homem que
interferiu-se no lar do Capitão para destruí-lo não presta.
28 de maio ... A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que
sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a
nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele.
Preto é o lugar onde eu moro.
29 de maio ... O Adalberto errou o quarto. Em vez de entrar no dele
entrou no quartinho da Aparecida. E os favelados queriam retirá-lo de lá,
porque se o Negrão chegasse havia de espancá-lo. Eu fui retirá-lo de lá porque
ele me obedece. Resolveu sair. Quando fui deitá-lo, ele disse:
– Sabe, Carolina, eu sou um homem
infeliz. Depois que morreu Marina nunca mais ninguém me quiz.
Eu dei uma risada, porque percebi
que ele havia falado e formado uma quadrinha. Parei de rir, parei de rir porque
a tristeza de sua voz comoveu-me. Marina foi uma mulher negra que viveu com
ele. Bebia muito. E morreu tuberculosa com 21 anos.
1 de junho Hoje eu não fui trabalhar, porque a Vera e o José Carlos
estão doentes. Eu fui vender uns ferros e um pouco de estopa. Ganhei só 31
cruzeiros.
2 de junho Hoje não vou sair porque os filhos ainda estão doentes.
As quatro da manhã a Vera começou tussir. Levantei e fiz um mingau de fubá para
ele.
3 de junho De manhã eu carreguei só um caldeirão com água. Fiz
café. Mandei o João comprar um tinteiro e duas agulhas. O José Carlos está
melhor e vai para a escola. Eu deixei a Vera. Vou sair porque eu tenho só um
pouquinho de feijão, sal e meio quilo de açucar.
4 de junho ... O senhor Manoel chegou. Agora eu estou lhe tratando
bem, porque percebi que gosto dele. Passei varios dias sem vê-lo e senti
saudades. A saudade é amostra do afeto.
A dona Adelaide veio trazer a
minha blusa de lã e ficou admirada vendo o senhor Manoel dentro de casa. Ele é
quieto, fala baixinho e anda muito bem vestido. Ela me olhava e olhava ele. Ele
com seus sapatos reluzentes. E eu suja parecendo um marginal de rua. Ela ficou
horrorizada porque eu durmo com ele. Ela me olhou com repugnancia quando eu
disse que ele vai me dar uma maquina de costura e um radio.
– O senhor é solteiro?
– Sou.
– Para a senhora ele está bem,
porque ele é solteiro e a senhora também.
... Percebi que a sua intenção
era diminuir-me aos olhos dele. Mas ela chegou tarde demias, porque nossa
amizade é igual uma raiz que segura uma planta na terra. Já está firme.
Dormi com ele. E a noite foi
deliciosa.
5 de junho ... Quando cheguei em casa fiz sopa de aveia. A Vera
chorou. Não queria comer aveia. Dizia:
Dei-lhe uma surra e ela comeu.
... Fomos deitar. As 10 da noite
começou o espetaculo na favela.aparecida, a nova visinha, bebeu muito e começou
a brigar com a Leila. Os homens da Leila queriam invadir o barracão dela. Ela
foi chamar a cavalaria. O Adalbertolevantou-se para socorrer a Leila. Começou
falar. Quando ouviram o tropel da cavalaria silenciaram.
O Euclides, o negro preto que
mora com a Aparecida é horrível quando bebe. Fala por cem.
– Eu dou tiro. Eu mato!
Quando ele parou de falar era 3
horas da manhã. O visinho ligou o radio. Eu não com o sururu da favela. Até as crianças
despertaram. Ouvi no radio o desastre da Central.
De manhã o José Carlos disse que
tinha vomitado de ver um encontro de trens.
Eu disse-lhe:
– Não pense nisto. Coitado dos operarios!
8 de junho ... Quando cheguei e abri a porta, vi um bilhete. Conheci
a letra do reporter. Perguntei a Dona Nena se ele esteve aqui. Disse que sim.
(...) O bilhete dizia que a reportagem vai sair no dia 10, no Cruzeiro. Que o livro vai ser editado.
Fiquei emocionada.
O senhor Manoel chegou. Disse-lhe
que a reportagem vai sair 4ª feira e que o reporter quer levar o livro para
imprimir.
– Eles ganham dinheiro nas tuas
costas e não te pagam. Eles estão te embrulhando. Você não deve entregar-lhe o
livro.
Eu não imprecionei com as ironias
do senhor Manoel.
9 de junho ... Eu disse para a Mulata e para a Circe que a
reportagem vai sair amanhã.
– Eu vou gastar 15 cruzeiros para
comprar o Cruzeiro e se eu não
encontrar a reportagem , você me paga!
Eu disse para a Dona Celestina
que a mulher do Coca-Cola disse que tudo que eu escrevo ela escreve tambem. A
Dona Celestina disse que não sabe se ela escreve. Que eu, ela sabe que escrevo.
... Eu estava ensinando contas
para os filhos quando bateram na janela. O João disse:
– Mamãe, atende o homem de
oculos.
Fui ver. Era o pai da Vera.
– Entra!
– Por onde entra aqui?
– Dá a volta.
Ele entrou. E perpassou o olhar
pelo barracão. Perguntou:
– Você não sente frio aqui? Isto
aqui não chove?
– Chove, mas eu vou tolerando.
– Você me escreveu que a menina
estava doente, eu vim visitá-la. Obrigado pelas cartas. Te agradeço porque você
me protege e não revela o meu nome no teu diario.
Ele deu dinheiro aos filhos e
eles foram comprar balas. Nós ficamos sozinhos. Quando os meninos voltaram a
Vera disse que quer ser pianista. Ele sorriu.
– Então você quer ser granfina.
Ele sorriu porque os filhos dele
são musicos. A Vera pediu um radio. Ele disse que dá um no Natal. Quando ele
saiu eu fiquei nervosa. Depois cantei e fui comprar pão para os filhos. Eles
comeram. E fomos deitar. Eu disse para o pai da Vera que ia sair no Cruzeiro.
Ele deu 100 cruzeiros. O José
Carlos achou pouco, porque ele estava com notas de 1.000.
10 de junho Hoje eu não vou sair porque o barraco está muito sujo.
Eu vou limpá-lo. Varri o assoalho e as teias de aranha. Pentiei os meus
cabelos. Os filhos foram na escola.
Quando os filhos chegaram, almoçaram. O João foi levar almoço para a Vera. Eu
disse para ele olhar se a reportagem havia saido no Cruzeiro. Eu estava com medo da reportagem não ter saido e as
pessoas que eu avisei para comprar o Cruzeiro dizer que eu sou pernostica.
O João quando retornou-se disse
que a reportagem havia saido. Vasculhei os bolsos procurando dinheiro. Tinha 13
cruzeiros. Faltava 2. O senhor Luiz emprestou-me. E o João foi buscar. O meu
coração ficou oscilando igual as molas de um relogio. O que será que eles
escreveram a meu respeito? Quando o João voltou com a revista, li – Retrato da favela no Diário de Carolina.
Li o artigo e sorri.pensei no
repórter e pretendo agradecê-lo. (...) Troquei roupas e fui na cidade receber o
dinheiro da Vera. Na cidade eu disse para os jornaleiros que a reportagem do O Cruzeiro era minha. (...) Fui receber
o dinheiro e avisei o tesoureiro que eu estava no O Cruzeiro.
... Eu estava impaciente porque
havia deixado os meus filhos e na favela atualmente tem um espírito de porco.
Tomei o ônibus e quando cheguei no ponto final a jornaleira disse que as
negrinhas da favela havia me chingado, que eu estava desmoralizando a favela.
Fui no parque buscar a Vera. E mostrei-lhe a revista.
Eu fui comprar meio quilo de
carne. Quando voltei para a favela passei no emporio do senhor Eduardo. Mostrei
a revista para os operarios do Frigorifico.
O João disse-me que o Orlando
Lopes, o atual encarregado da luz, havia me chingado. Disse que eu fiquei
devendo 4 meses. Fui falar com o Orlando. Ele disse-me que eu puis na revista
que ele não trabalha.
– Que historia é esta que eu
fiquei devendo 4 meses de luz e água?
– Ficou sim, sua nojenta! Sua
vagabunda!
– Eu escrevo porque preciso
mostrar aos politicos as pessimas qualidades de vocês. E eu vou contar ao
reporter.
– Eu não tenho medo daquele puto,
daquele fresco!
Que nojo que eu senti do tal
Orlando Lopes. (...) Vim para o meu barraco. Fiz uns bifes e os filhos comeram.
Eu jantei. Depois cantei a valsa Rio
Grande do Sul.
11 de junho Levantei e fui carregar
agua. Depois fui fazer compras. Troquei os filhos, eles foram para a escola. Eu
não queria sair, mas estou com pouco dinheiro. Precisei sair. Quando circulava
pelas ruas o povo abordava-me para dizer que havia me visto no O Cruzeiro.
... Eu fui na
banca e comprei uma revista. Mostrei para o farmacêutico. Eu comprei outra
revista e fui levar para o José do Bar dos Esportes. Ele comprou a revista. Eu
passei na banca e comprei outra. Mostrei para o sapateiro. Ele sorriu. (...)
Passei no emporio do José Martins e falei se ele queria ler a revista.
– Deixa ai.
Depois vamos ler.
... Dei jantar
para os filhos e sentei na cama para escrever. Bateram na porta. Mandei o João
ver quem era e disse:
– Entra, negra!
– Ela não é
negra, mamãe. É uma mulher branquinha e está com O Cruzeiro na mão.
Ela entrou.
Uma loira muito bonita. Disse-me que havia lido a reportagem no O Cruzeiro e queria levar-me no Diario para conseguir auxilio para mim.
... Na
redação, eu fiquei emocionada. (...) O senhor Antonio fica no terceiro andar,
na sala do Dr. Assis Chatobriand. Ele deu-me revistas para eu ler. Depois foi
buscar uma refeição par mim. Bife, batatas e saladas. Eu comendo o que sonhei! Estou
na sala bonita. A realidade é muito mais bonita do que o sonho.
Depois fomos
na redação e fotografaram-me. (...) Prometeram-me que eu vou sair no Diario da Noite amanhã. Eu estou tão
alegre! Parece que a minha vida estava suja e agora estão lavando.
13 de junho Eu saí. Fui catar um pouco de papel. Ouço várias
pessoas dizer:
– É aquela que está no O Cruzeiro!
– Mas como está suja!
... Conversei com os operários.
Desfiz as caixas de papelão, ensaquei outros papeis. Ganhei 100 cruzeiros. As
moças do deposito começaram a cantar:
Carolina, hum, hum, hum...
O Leon disse:
– Ela saiu no O Cruzeiro. Com ela agora é mais
cruzeiro.
– Eles te pagaram?
– Vão dar-me uma casa.
– Vai esperando!
... Fiquei pensando num preto que
é meu visinho. O senhor Euclides. Ele disse-me:
– Dona Carolina, eu gosto muito
da Senhora. A senhora quer escrever muitos livros?
– Oh, se quero!
– Eu preciso trabalhar e escrevo
nas horas vagas.
– Eu vejo que a vida é muito
sacrificada.
– Eu já estou habituada.
– Se a senhora quizer ficar
comigo, eu peço esmolas e te sustendo. É de dinheiro que as mulheres gostam. E
dinheiro eu arranjo para você. Eu não tenho ninguem que gosta de mim... Eu sou
aleijado. Eu gosto muito da senhora. A senhora tá dentro da minha cabeça. Tá
dentro do meu coração.
Quando ele ia me dar um abraço
afastei.
16 de junho ... Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os
filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Eles
estão cheios de vida. Quem vive, precisa comer. Fiquei nervosa, pensando: será
que Deus esqueceu-me? Será que ele ficou de mal comigo?
18 de junho ... O barraco da Aparecida é o ponto para reunir os
pinguços. Beberam e depois brigaram. O Lalau disse que eu ponho varias pessoas
no jornal, mas ele eu não ponho.
– Se você me por no jornal eu te
quebro toda, vagabunda. Esta negra precisa sair daqui da favela.
A Aparecida veio dizer que o João
mandou ele tomar no ...
Eu disse:
– Vocês são as professoras.
Quando bebem falam coisas horríveis.
19 de junho . . .O senhor Manoel apareceu. Disse que comprou a
revista para ver o meu retrato. Quis saber se o repórter deu-me algo.
– Não, mas vai dar.
– Eu não acredito. Só creio
quando eu ver.
Eu disse-lhe que só depois que o
livro circular é que o escritor recebe.
22 de junho ... Saí triste porque não tinha nada em casa para
comer. Olhei o céu. Graças a Deus não vai chover. Hoje é segunda-feira. Tem
muitos papeis nas ruas. No ponto do bonde, eu me separei da Vera. Ela disse:
– Faz comida, que eu vou chegar
com fome.
A frase comida ficou eclodindo
dentro do meu cérebro. Parece que o meu
pensamento repetia:
Comida! Comida! Comida!
Dizem que o Brasil já foi bom.
Mas eu não sou da epoca do Brasil bom. . . .Hoje eu fui me olhar no espelho.
Fiquei horrorizada. O meu rosto é quase igual ao da minha saudosa mãe. E estou
sem dente. Magra. Pudera! O medo de morrer de fome.
25 de junho ... Voltei para o meu barraco imundo. Olhava o meu
barraco envelhecido. As tabuas negras e podres. Pensei: está igual a minha
vida!
Quando eu preparava para
escrever, o tal Orlando surgiu e disse que queria o dinheiro. Dei-lhe 100
cruzeiros.
– Eu quero 250. Quero o deposito.
– Eu não pago deposito porque já
foi abolido pela Light.
– Então eu corto a luz,
E desligou-a.
27 de junho ... O tal Orlando Lopes passava de bicicleta. Os meus
filhos falaram:
– Olha o Orlando!
Eu disse-lhes:
– Eu não vou olhar este nojento.
Ele ouviu e respondeu:
– Nojento é a puta que te pariu!
... Eu disse-lhe que ia escrever
e não podia perder tempo com vagabundo. Fechei a porta.
29 de junho Hoje eu amanheci rouca. Era 4 horas quando eu fui pegar
agua, porque o tal Orlando Lopes disse que não deixa eu pegar agua. Puis agua
para fazer café. Estou só com 18 cruzeiros. Estou tão triste! Se eu pudesse
mudar desta favela! Isto é obra do Diabo.
Aqui já morou homens malvados,
mas esse tal de Orlando suplanta-os. Hoje eu passei o dia escrevendo. Contei
quantos barracos tem na favela para ver quanto este tal de Orlando Lopes vai
arrecadar se os favelados pagar-lhe os 150 cruzeiros de deposito. Contei 119
barracos com luz.
O céu está maravilhoso. Azul claro
e com nuvens brancas esparsas. Os balões com suas cores percorrem o espaço. As
crianças ficam agitadas quando um balão vem desprendendo-se. Como é lindo o dia
de São Pedro. Porque será que os santos juninos são homenageados com fogos?
O tal Orlando Lopes passou na
minha rua. Ele disse que tudo o que eu falo dele as mulheres lhe conta. São
umas idiotas. Eu quero defendê-las, porque há ladrões de toda especie. Mas elas
não compreendem.
30 de junho ... Aquele preto que cata verdura no Mercado veio
vender-me umas batatas murchas e brotadas. Olhando-as, vi que ninguém ia
comprar. Pensei: este pobre deve ter vagado inutilmente sem conseguir dinheiro
para a refeição. Perguntei-lhe se queria comida.
– Quero!
Dirigiu-me um olhar tão terno
como se estivesse olhando uma santa. Esquentei macarrão, bofe e torresmo para
ele.
1 de julho ... Eu estou cançada e enjoada da favela. Eu disse para
o senhor Manoel que eu estou passando tantos apuros. O pai da Vera é rico,
podia ajudar-me um pouco. Ele pede para eu não divulgar-lhe o nome no Diario,
não divulgo. Podia reconhecer o meu silêncio. E se eu fosse uma destas pretas
escandalosas e chegasse lá na oficina e fizesse um escandalo?
– Dá dinheiro para a tua filha!
2 de julho ... Levantei, acendi o fogo e mandei o João comprar 10
de açucar. Bateram no barracão. Os filhos falaram:
– É o pai da Vera.
– É o papai – ela sorriu para
ele.
Eu é que não fiquei com a tal
visita. Ele disse-me que não levou o dinheiro lá no Juiz porque não teve tempo.
Mostrei-lhe os sapatos da Vera que estão furados e a agua penetra.
– Quanto pagou isto?
– 240.
– É caro.
... Ele deu-me 120 cruzeiros e 20
para cada filho. Ele mandou os filhos comprar doces para nós ficarmos sozinhos.
Tem hora que eu tenho desgosto de ser mulher. Dei graças a Deus quando ele
despediu-se.
3 de julho ... Não tem gordura. Hoje acabou-se a gordura do porco.
E agora tenho de comprar gordura.
... Tomei banho e fui deitar. Que
noite horrível! A tal Terezinha e o companheiro não nos deixou dormir. Eu não
sei onde eles arranjaram uma galinha. E discutiram:
– Vai, Euclides, depenar a
galinha!
– Vai você!
E ficaram nesta lenga-lenga até
as 2 da madrugada.
6 de julho O senhor Manoel saiu. E eu fiquei deitada. Depois
levantei e fui carregar agua. Que nojo. Ficar ouvindo as mulheres falar.
Falaram que D., que ela namora qualquer um. Que a R., irmã do B., pertence aos
homens.
Falamos do J. P. que quer
amasiar-se com sua filha I. (...) Ele mostra para a filha e convida...
– Vamos minha filha! Dá para o
seu papaizinho! Dá ... só um pouquinho.
Eu já estou cançada de ouvir
isto, porque infelizmente eu sou visinha do J. P. (...) É um homem que não pode
ser admitido numa casa onde tem crianças.
Eu disse:
– É por isto que eu digo que a
favela é o chiqueiro de São Paulo.
Enchi minha lata e zarpei, dando
graças a Deus por sair da torneira. A. C. disse que pediu dinheiro ao seu pai
para comprar um par de sapatos, e ele disse:
– Se você me dar a . . . eu te
dou 100.
Ela deu. E ele deu-lhe só 50. Ela
rasgou o dinheiro e a I. catou os pedaços e colou.
Por isso que eu digo que a favela
é o Gabinete do Diabo.
... Fiz o almoço, depois fui
escrever. Estou nervosa. O mundo está tão insipido que eu tenho vontade de
morrer. Fiquei sentada no sol para aquecer. Com as agruras da vida somos uns
infelizes perambulando aqui neste mundo. Sentindo frio interior e exterior.
Percebi que estava me reanimando.
Quando anoiteceu eu fiquei alegre. Cantei. O João e o José Carlos tomaram
parte. Os visinhos ebrios interferiram com suas vozes desafinadas.
Cantamos a Jardineira.
7 de julho ... A Dona Angelina Preta estava dizendo que vai vender
o seu barraco e vai mudar para Guaianazes. Que não suporta mais morar na rua A.
Fiquei contente ouvido ela dizer que vai mudar.
Até eu, o dia que me mudar hei de
queimar incenso para agradecer a Deus. Hei de fazer jejum mental, pensar só nas
coisas boar que agradam a Deus.
11 de julho ... Era 7 horas da noite. Os filhos estavam na rua. O
João penetrou veloz como se estivesse sendo impelido pelo foguete russo. Disse:
– Mamãe, o José Carlos vai para o
Juiz de Menores!
– Porque?
– Ele jogou uma pedra na vidraça
da fabrica de peças de automóvel e quebrou. E o nortista que toma conta da
fabrica disse que vai mandá-lo para o Juiz.
Pensei: uma vidraça qualquer mãe
pode pagar. Levantei, vesti o casaco, peguei dinheiro puis no bolso. Peguei a
revista com a minha reportagem e saí. Fui ver a vidraça. Estava quebrada, e a
pedra foi arremessada com estilingue. E o furo na vidraça ficou oval.
O vigia da fabrica abriu a janela
e viu o João e perguntou:
– O que você está fazendo aqui?
– Sou eu, que vim ver o furo da
vidraça.
O nortista começou a falar. Eu
dizia para o José Carlos o que ele foi fazer lá, que anda atoa e arranja
encrenca, perguntei ao nortista se havia batido nele. Respondeu-me que não. O
José Carlos dizia que ele havia lhe apertado o braço.
Eu acreditei no meu filho. Em
geral, as mães acreditam nos filhos.
12 de julho ... Minha luta hoje foi para fazer almoço. Não tenho
gordura. Deixei a carne cosinhar e puis lingüiça junto para fritar e apurar gordura
para fazer o arroz e o feijão. Temperei a salada com caldo de carne. Os filhos
gostaram.
Quando a Vera come carne, fica
alegre e canta.
13 de julho ... Comprei 30 cruzeiros de carne e fiquei nervosa
porque os 30 que sobrou não vai dar para comprar gordura e arroz. Estava
apreensiva receando que meus filhos brigassem com os visinhos.
Quando cheguei eles estavam
sentados dentro do chiqueiro, lendo gibi. Ouvi a voz de Dona Alelaide. Dizia a
meus filhos:
– Vocês pararam de brigar?
Perguntei a Vera o que havia e
com quem brigaram. Ela relatou que o João e o José Carlos brigaram. Que
deixaram o violão cair no chão e puseram perfume no fogo para acender.
Quebraram a escova de lavar o assoalho e abriram o pacote de tinta verde que eu
estou guardando. Não sei prá que, mas estou guardando.
... Puis brasa no ferro, passei a
minha saia verde, lavei a blusa de renda que eu achei no lixo, tomei banho e
troquei-me. Troquei a Vera e fomos para a cidade. Eu estava só com 6 cruzeiros.
Pensava: e se o pai da Vera não levou o dinheiro, como é que eu vou voltar?
... Fui receber o dinheiro da
Vera. Que fila! Era as mulheres que iam receber as mensalidades dos esposos e
dos pais de seus filhos. Eu tenho que dizer nossos filhos, porque eu tambem
estava no núcleo. Dizem que quem entra na restea vira cebola.
As mulheres falavam dos esposos.
É lá que os homens tomam nomes de animais:
– O meu é um cavalo bruto e
ordinario!
– E o meu é um burro. Aquele desgraçado! Outro
dia ele viajou na Central e eu pedia a Deus para acontecer um desastre e ele
morre e ir para o Inferno.
Perguntei a uma mulher que estava
atrás de mim:
– Quem é o seu advogado?
– Dr. Walter Aymberê.
– Ele é o meu tambem. Mas eu não
gosto dele.
... Eu recebi o grande dinheiro.
250 cruzeiros. A Vera sorria e dizia:
– Agora eu gosto do meu pai.
Passei na sapataria e comprei um
par de sapatos para a Vera. Quando o senhor Manoel, um nortista, lhe
experimentava os sapatos, ela dizia:
– Sapato, não acaba, porque
depois a mamãe custa a comprar outro. Eu não gosto de andar descalça.
...Passei no emporio do senhor
Eduardo e comprei um quilo de arroz. Sobrou só 7 cruzeiros. Só na cidade eu
gaste 25. A cidade é um morcego que chupa o nosso sangue.
15 de julho Quando eu deixava o leito a Vera já estava acordada e
perguntou-me :
– Mamãe, é hoje que eu faço anos?
– É. E meus parabens. Desejo-te
felicidades.
– A senhora vai fazer um bolo
para mim?
– Não sei. Se eu arranjar
dinheiro.
Acendi o fogo e fui carregar
agua. As mulheres reclamavam que a agua é pouca.
... Os lixeiros já haviam
passado. Catei pouco papel. Passei na fabrica para catar estopas. Comecei
sentir tontura. Resolvi ir na casa da Dona Angelina pedir um pouco de café. A
Dona Angelina deu-me. (...) Quando eu saí disse-lhe que já estava melhor.
– É fome. Você precisa comer.
– Mas o que se ganha não dá.
... Já emagreci 8 quilos. Eu não
tenho carne, e o pouco que tenho desaparece. Peguei os papeis e saí. Quando
passei diante de uma vitrine vi o meu reflexo. Desviei o olhar, porque tinha a
impressão de estar vendo um fantasma.
... Eu fritei peixe e fiz polenta
para os filhos comer com peixe. Quando a Vera chegou viu a polenta dentro da
marmita e perguntou:
– E o bolo. Hoje eu faço anos!
– Não é bolo. É polenta.
– Polenta eu não gosto.
Ela trouxe leite. Eu dei-lhe
leite com polenta. Comeu chorando.
Quem sou eu para fazer bolo?
18 de julho ... Quando eu ia catar papel encontrei a dona Binidita
mãe da Nena preta. Eu digo Nena preta porque nós temos aqui na favela a Nena
branca. (...) Começamos a falar do menino que morreu nos fios da Light. Ela
disse-me que foi o filho da Laura do Vicentão.
– Oh! – exclamei. Porque conhecia
o menino e a sua história de filho engeitado. Aí vai a história do infausto
Miguel Colona:
Quando a Laura foi para a
maternidade ter filho, o seu nasceu e morreu. Ela ficou triste, porque queria
criar o filho. E chorava. Ao seu lado, uma mulher jovem teve um filho. E
chorava com inveja de Laura. Ela é que desejava que o seu filho nascesse e
morresse. Mas o seu filho estava vivo. Aquelas lagrimas preocupou a Laura, que
interrogou-lhe:
– Porque chora, se o teu filho
está vivo e é bonito.
A mulher disse que veio do Norte.
Virgem. Chegou em São Paulo arranjou aquele filho. E o pai da criança não
queria casar-se com ela. Que seus pais queriam que ela voltasse para o Norte. E
ela ia voltar para o Norte, mas não queria levar o filho. Se a Laura queria o
menino ela dava-o.
A Laura aceitou. Ficou tão
contente como se tivesse ganho todo o ouro que existe no mundo. Quando ela saiu
da maternidade revelou que o seu filho morreu e ela ganhou aquele. Ela era boa
para ele. Comprou televisão porque ele insistiu. Ele estava com 9 anos e no 2º
primario. E agora foi arrebatado tragicamente pela morte.
Temos só um geito de nascer e
muitos de morrer.
... Hoje tem muito papel no lixo.
Tem tantos catadores de papeis nas ruas. Tem os que catam e deitam-se
embriagados. Conversei com um catador de papel.
– Porque é que não guarda o
dinheiro que ganha?
Ele olhou-me com seu olhar de
tristeza:
– A senhora me faz rir! Já foi o
tempo que a gente podia guardar dinheiro. Eu sou um infeliz. Com a vida que
levo não posso ter aspiração. Não posso ter um lar, porque um lar inicia com
dois, depois vai multiplicando.
Ele olhou-me e disse-me:
– Porque falamos disso? O nosso
mundo é a margem. Sabe onde estou dormindo? Debaixo das pontes. Eu estou doido.
Eu quero morrer.
– Quantos anos tem?
– 24. Mas já enjoei da vida.
Segui pensando: quem escreve
gosta de coisas bonitas. Eu só encontro tristezas e lamentos.
22 de julho Eu estava deitada. Era 5 horas quando a Teresinha e o
Euclides começaram a falar:
– Adalberto! Levanta e vai
comprar pinga.
O Euclides disse:
– Você não vai escrever? Não vai
catar papel? Levanta para você escrever sobre a vida dos outros.
Eu levantei, peguei um pau de
vassoura e fui falar-lhe para não aborrecer-me que eu estou cançada de tanto
trabalhar. E dei umas cacetadas no barraco. Ele calou e não disse mais nada.
26 de julho ... Era 19 horas quando o senhor Alexandre começou a
brigar com a sua esposa. Dizia que ele havia deixado o seu relogio cair no chão
e quebrar-se. Foi alterando a voz e começou a espancá-la. Ela pedia socorro. Eu
não imprecionei, porque já estou acostumada com os espetaculos que ele
representa. A Dona Rosa correu para socorrer. Em um minuto a noticia circulou
que um homem estava matando a mulher. Ele deu-lhe com um ferro na cabeça. O
sangue jorrava. Fiquei nervosa. O meu coração parecia a mola de um trem em
movimento. Deu-me dor de cabeça.
Os homens pularam a cerca para
impedi-lo de bater na pobre mulher. Abriram a porta da frente e as mulheres e
as crianças invadiram. O Alexandre saiu lá de dentro enfurecido e disse:
– Vão embora, cambada! Estão
pensando que isto aqui é a casa da sogra?
Todos correram. Era uns 20
querendo passar na porta. As crianças, ele chutou. A Vera recebeu um chute e
caiu de quatro. Os filhos da Juana foram chutados. Os favelados começaram a
rir.
A cena não era para rir. Não era
comedia. Era drama.
28 de julho . . .Eu fui escrever. Ninguem aborreceu-me hoje. Quando
o crepusculo vinha surgindo eu fui procurar a Vera. Os favelados estão reunidos
na rua apreciando a briga da Leila e da Pitita com uma negrinha que apareceu
por aqui. Mas eu já estou enfastiada de brigas. É tantas brigas na favela.
A luz da favela estava acesa. E a
porta do barracão da Leila estava fechada. Vi varias crianças olhando pela
fresta. Queria ir ver. Mas há certas coisas que desabonam o adulto. Quando o
José Carlos entrou, disse:
– Eu tenho uma coisa para contar.
– O que é?
– Eu vi o Chico fazendo bobagem
com a P.
Não dei margem ao assunto. Ele
prosseguia:
– O Chico fazia bobagem com a P.
e a Vanilda estava perto olhando.
A Vanilda tem 2 anos!
30 de julho ... Escrevi até tarde, porque estou sem sono. Quando
deitei adormeci logo e sonhei que eu estava noutra casa. E eu tinha tudo. Sacos
de feijão. Eu olhava os sacos e sorria. Eu dizia para o João:
– Agora podemos dar um pontapé na
miséria.
E gritei:
– Vai embora, miséria!
A Vera despertou-se e perguntou:
– Quem é que a senhora está
mandando ir-se embora?
31 de julho ... Comprei 20 de carne gorda, porque eu não tenho
gordura. Passei no emporio do senhor Eduardo para comprar 1 quilo de arroz.
Deixei os sacos na calçada. A Vera pois a carne em cima do saco, o cachorro
pegou. Chinguei a Vera.
– Ordinaria, preguiçosa. Hoje
você vai comer m. . .
– Deixa, mamãe. Quando eu
encontrar o cachorro eu bato nele.
... Quando cheguei em casa estava
com tanta fome. Surgiu um gato miando. Olhei e pensei: eu nunca comi gato, mas
se este estivesse numa panela ensopado com cebola, tomate, juro que comia. Porque
a fome é a pior coisa do mundo.
... Eu disse para os filhos que
hoje nós não vamos comer. Eles ficaram tristes.
1 de agosto Eu deitei, mas não dormi. Estava tão cançada. Ouvi um
ruido dentro do barraco. Levantei pára ver o que era. Era um gato. Eu ri, porque
não tenho nada para comer. Fiquei com dó do gato.
4 de agosto Amanheceu chovendo. Eu fiz café e mandei o João comprar
15 cruzeiros de pão. Emprestei 15 para o Adalberto. Não carreguei agua. Já
enjoei de ficar naquela fila desgraçada.
Deixei a Vera deitada. Estava
chovendo uma chuva miudinha e fria. Eu achei um par de sapatos no lixo e estou
usando (...) Quando eu ia catar papel a Dona Esmeralda pediu-me 20 emprestado.
Dei-lhe 30 cruzeiros, porque ela tem 7 filhos e o marido está no Juqueri[2].
Saí e fui no roteiro habitual.
Fui catando papel, ferros e estopas.
... Encontrei um cego.
– Há quantos anos perdeu a vista?
– 10 anos.
– Achou ruim?
– Não. Porque o que Deus faz é
bom.
– Qual foi a causa da perda
visual?
– Fraqueza.
– E não teve possibilidade de
cura?
– Não. Só se fizer
transplantação. Mas é preciso encontrar quem me dê os olhos.
– Então o senhor já viu o sol, as
flores e o céu claro de estrelas?
– Já vi. Graças a Deus.
6 de agosto Hoje é o aniversário de José Carlos. 9 anos. Ele é de
1950. Tempo bom. Mas ele quer ter 10 anos, porque quer namorar a Clarinda.
Eu sei. Levei a Vera. Catei
papel, achei um par de sapatos no lixo. Vendi por 20 cruzeiros. Voltei para a
favela. Comprei meio quilo de carne. Fiz bife. Almocei.
7 de agosto ... Catei dois sacos de papel e ganhei 45 cruzeiros.
Fiquei desesperada. O que é que eu vou fazer com 45 cruzeiros? Catei um pouco
de estopa e voltei. Eu fui no ferro velho vender as estopas. Ganhei 33
cruzeiros. Estava indecisa, pensando o que ia fazer para comer. Eu estava
lavando as louças quando bateram na porta. O José Carlos disse:
– É a Dona Teresinha Becker!
Ela deu-me 500 cruzeiros. Eu
disse que ia comprar sapatos para o José Carlos e agradeci. Lhe acompanhei até
o automovel. (...) eu fui conversar com o Chico e mostrei-lhe os 500 cruzeiros
e disse-lhe que a Dona Teresinha é a minha mãe branca.
8 de agosto ... Morreu um menino aqui na favela. O sepultamento foi
as 9 horas. Os negro que iam acompanhar o extinto alugaram um caminhão violão,
pandeiro e pinga. O Zirico dizia:
– Japonês quando morre os vivos
cantam. Então vamos cantar tambem.
... A pior praga da favela
atualmente são os ladrões. Roubam a noite e dormem durante o dia. Se eu fosse
homem não deixava os meus filhos residir nesta espelunca. Se Deus auxiliar-me
hei de sair daqui, e não hei de olhar para trás.
13 de agosto Levantei as 6 horas. Estava furiosa com a vida. Com
vontade de chorar porque eu não tenho dinheiro para comprar pão. (...) Os
filhos foram na escola. Eu saí sozinha. Deixei a Vera porque vai chover. Fui
catar estopas e fui catar papelões. Ganhei 30 cruzeiros. Fiquei triste,
pensando: o que hei de fazer com 30 cruzeiros? Estava com fome. Tomei uma media
com pão doce. Voltei para a favela. Quando eu cheguei a Vera estava na janela,
olhando as maquinas da Vera Cruz que vieram filmar o Promessinha. Vi varias
pessoas olhando as cenas. Fui ver. Quando eu ia chegando, os vagabundos
disseram:
– Olha a Elizabety Thaylôr.
– Vão criticar o Diabo!
Voltei e fui esquentar comida
para os filhos. Arroz e peixe. O arroz e o peixe era pouco. Os filhos comeram e
ficaram com fome. Pensei:
Se Jesus Cristo pudesse
multiplicar estes peixes!
O senhor Manoel apareceu.quando
eu voltava do deposito de papel, ele vinha acompanhando-me. Deu 200 cruzeiros,
eu não quis aceitar.
– Você não me quer mais?
– Eu tenho muito serviço. Não
posso preocupar com homens. Meu ideal é comprar uma casa decente para os meus
filhos. Eu, nunca tive sorte com homens. Por isso não amei ninguem. Os homens
que passaram na minha vida só arranjaram complicações para mim. Filhos para eu
criá-los.
Ele despediu-se e pegou os 200
cruzeiros e saiu.
Lavei as louças. Depois fui no
deposito de ferro velho vender estopas e ferros. Ganhei 21 cruzeiros.
... Fui ver a filmagem do
documentario do Promessinha. Pedi os nomes dos diretores do filme para por no
meu diário (...) As mulheres da favela perguntavam-me:
– Carolina é verdade que vão
acabar a favela?
– Não. Eles estão fazendo uma
fita de cinema.
O que se nota é que ninguem gosta
de favela, mas precisa dela. Eu olhava o pavor estampado nos rostos dos
favelados.
– Eles estão filmando as proezas
do Promessinha. Mas o Promessinha não é da nossa favela.
Quando os artistas foram almoçar
os favelados queriam invadir e tomar as comidas dos artistas. Pudera! Frangos,
empadinhas, carne assada, cervejas. (...) Admirei a polidez dos artistas da
Vera Cruz. É uma companhia cinematográfica nacional. Merece deferência
especial. Permaneceram o dia todo na favela. A favela superlotou-se. E os
visinhos de alvenaria ficaram comentando que os intelectuais dão preferencia
aos favelados.
As pessoas que olhavam a filmagem
faziam tanto barulho. O Bonito veio ver a filmagem. Perguntei-lhe se já foi
filmado, porque ele é cantor.
– Não, porque não sou popular.
15 de agosto ... As mulheres chingavam os artistas:
– Estes vagabundos vieram sujar a
nossa porta. As pessoas que passavam na via Dutra e viam os bombeiros vinham
ver se era incêndio ou ver se era alguem que havia morrido afogado. O povo
dizia:
– Estão filmando o Promessinha!
Mas o título do filme é Cidade Ameaçada.
16 de agosto ... Passei a tarde escrevendo. Lavei todas as roupas.
Hoje eu estou alegre.
Tem festa no bairro de um
nortista. E a favela está superlotada de nortistas. O Orlando Lopes está
girando pela favela. Quer dinheiro. Ele cobra a luz no cambio negro, e tem
pessoas aqui na favela passando fome.
26 de agosto A pior coisa do mundo é a fome!
31 de dezembro ... Levantei as 3 e meia e fui carregar agua.
Despertei os filhos, eles tomaram café. Saimos.
O João foi catando papel porque quer dinheiro para ir ao cinema. Que suplicio
carregar 3 sacos de papeis. Ganhamos 80 cruzeiros. Dei 30 ao João.
... Eu fui fazer compras, porque
amanhã é dia de ano. Comprei arroz, sabão, querosene e açucar.
O João e a Vera deitaram-se. Eu
fiquei escrevendo. O sono surgiu, eu adormeci. Despertei com o apito da Gazeta anunciando o Ano Novo. Pensei
nas corridas e no Manoel de Faria. Pedia a Deus para ele ganhar a corrida. Pedi
para abençoar o Brasil.
Espero que 1960 seja melhor do
que 1959. Sofremos tanto no 1959, que dá para a gente dizer:
Vai, vai mesmo!
Eu não quero você mais.
Nunca mais!
1 de janeiro de 1960
Levantei as 5 horas e fui
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